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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Filosofia - Aula 9



Aula 9
Excertos Fundamentação à Metafísica dos Costumes  - Kant (estudar o imperativo categórico)

PREFÁCIO
A ANTIGA filosofia grega repartia-se em três ciências: a Física, a Ética e a Lógica.. Esta
divisão está inteiramente de acordo com a natureza das coisas, nem temos que
introduzir-lhe qualquer espécie de aperfeiçoamento, a não ser acrescentar o princípio em
que ela se baseia, para que desse modo possamos, por um lado, possuir a certeza de ela
ser completa e, por outro lado, determinar com exatidão as subdivisões necessárias.
Todo conhecimento racional é ou material e refere-se a qualquer objeto, ou formal e
ocupa-se exclusivamente com a forma do entendimento e da razão, um e outro em si
mesmos considerados, e com as regras universais do pensamento em geral, sem
distinção de objetos. A filosofia formal denomina-se LÓGICA, mas a filosofia material,
que trata de objetos determinados e das leis a que eles estão sujeitos, divide-se, por sua
vez, em duas, visto estas leis serem ou leis da natureza ou leis da liberdade. A ciência
das primeiras chama-se FÍSICA; a das segundas, ÉTICA.Aquela dá-se também o nome de
Filosofia da natureza ou Filosofia natural; a esta, o de Filosofia dos costumes.
A Lógica não pode comportar parte empírica, ou seja, parte na qual as leis universais e.
necessárias do pensamento estribem em princípios tomados da experiência; de
contrário, não seria lógica, isto é, cânone do entendimento e da razão, válido para todo
pensamento e capaz de ser demonstrado. Ao invés, tanto a Filosofia natural como a
Filosofia moral podem, cada uma, possuir uma parte empírica, pois devem aplicar suas
leis, aquela à natureza como a objeto da experiência, e esta à vontade humana enquanto
afetada pela natureza: leis, no primeiro, caso, em conformidade com as quais tudo
acontece; leis, no segundo caso, de acordo com as quais tudo deve (388) acontecer,
tomando todavia em consideração as condições, mercê das quais muitas vezes não
acontece o que deveria acontecer.
Pode-se denominar empírica toda filosofia que se apóia em princípios da experiência; e
pura, a que deriva suas doutrinas exclusivamente de princípios a priori. Esta, quando
simplesmente formal, chama-se Lógica; mas, se for circunscrita a determinados objetos
do entendimento, recebe o nome de Metafísica.
Deste modo, surge a idéia de uma dupla metafísica: uma Metafísica da natureza e uma
Metafísica dos costumes. A Física terá pois, além de sua parte empírica, uma parte
racional . Outro tanto sucede com a Ética; embora, aqui, a parte empírica possa
denominar-se particularmente Antropologia prática, e a parte racional receber o nome
de Moral.
Todas as indústrias, mesteres e artes lucraram com a divisão do trabalho. Devido a ela,
não é um só que faz todas as coisas, mas cada qual se circunscreve àquela tarefa
peculiar que, por seu modo de execução, se distingue sensivelmente das demais, a fim
de poder cumpri-la com o máximo de perfeição e de facilidade possível. Onde os
trabalhos não são assim divididos e discriminados, e cada artista tem de realizar tudo
por si, as indústrias permanecem numa fase de grande barbárie. Ora seria, por certo,
questão digna de ser examinada, perguntar se a filosofia pura não exige em todas as suas partes uni especialista que se lhe dedique exclusivamente, e se, para o conjunto desta
indústria que é a ciência, não seria preferível que os que estão habituados a apresentar,
conforme ao gosto do público, o empírico imiscuído com o racional, combinado em
toda a sorte de proporções que eles próprios desconhecem, que a si próprios se
qualificam de autênticos pensadores ao mesmo tempo que apodam de visionários os que
se ocupam da parte puramente racional, se não seria preferível, digo, que esses tais
fossem advertidos a que não se incumbissem simultaneamente de duas tarefas que
devem ser desempenhadas de maneira inteiramente diferente, cada uma das quais
reclama sem dúvida talento particular, e cuja reunião numa só pessoa conduz fatalmente
a produzir obra imperfeita. Limito-me, entanto, aqui, a perguntar se a natureza da
ciência não exige que se separe sempre com sumo cuidado a parte empírica da parte
racional, que se faça preceder a Física propriamente dita (empírica) de uma Metafísica
da natureza, e a Antropologia prática de uma Metafísica dos costumes, as quais
Metafísicas deveriam ser cuidadosamente expurgadas de todo elemento (389) empírico,
com o intuito de saber tudo o que a razão pura pode fazer em ambos os casos e em que
mananciais ela haure esta sua doutrinação a priori, quer semelhante tarefa seja
empreendida por todos os moralistas (que não têm conto), quer somente por alguns que
para tal se sintam especialmente chamados.
Como aqui não tenho em vista senão propriamente a filosofia moral, limito a estes
termos a questão proposta: não seria de suma necessidade elaborar, de vez, uma
Filosofia moral. pura completamente expurgada de tudo quanto é empírico e pertence à
Antropologia? Que tal filosofia deva existir resulta manifestamente da idéia comum do
dever e das leis morais. Deve-se concordar que uma lei, para possuir valor moral, isto é,
para fundamentar uma obrigação, precisa de implicar em si uma absoluta necessidade;
requer, além disso, que o mandamento: "Não deves mentir" não seja válido somente
para os homens, deixando a outros seres racionais a faculdade de não lhe ligarem
importância. O mesmo se diga das restantes morais propriamente ditas. Por conseguinte,
o princípio da obrigação não deve ser aqui buscado na natureza do homem, nem nas
circunstâncias em que ele se encontra situado no mundo, mas a priori. só nos conceitos
da razão pura]; e qualquer outra prescrição, que estribe nos princípios da simples
experiência, mesmo que sob certos aspectos fosse prescrição universal, por pouco que
se apóie em razões empíricas, nem que seja por um motivo apenas, pode ser
denominada regra prática, nunca porém lei moral.
Pelo que, em todo conhecimento prático não só as leis morais, juntamente com seus
princípios, se distinguem essencialmente de tudo o que contém algum elemento
empírico, como também toda filosofia moral se apóia inteiramente em sua parte pura, e,
aplicada ao homem, não deduz coisa alguma do conhecimento do que este é
(Antropologia), senão que lhe confere, na medida em que ele é ser racional, leis a
priori. Sem dúvida tais leis exigem uma faculdade de julgar aguçada pela experiência,
capaz de, em parte, discernir em que casos elas são aplicáveis e, em parte, procurar-lhes
acesso à vontade humana e influência para a prática; porque o homem, sujeito como se
encontra a tantas inclinações, possui decerto capacidade para conceber a idéia de uma
razão pura prática, mas não pode assim com facilidade Tornar essa idéia eficaz in
concreto em seu procedimento.
(390) Uma Metafísica dos costumes é pois rigorosamente necessária, não só por motivo
de necessidade da especulação, a fim de indagar a origem dos princípios práticos que
existem a priori em nossa razão, mas também porque a própria moralidade está sujeita a toda a espécie de perversões, enquanto carecer deste fio condutor e desta norma
suprema de sua exata apreciação. Com efeito, para que uma ação seja moralmente boa,
não basta que seja conforme com a lei moral; é preciso, além disso, que seja praticada
por causa da mesma lei moral; de contrário, aquela conformidade e apenas muito
acidental e muito incerta, visto como o princípio estranho à moral produzirá, sem
dúvida, de quando em quando, ações conformes com a lei, mas muitas vezes também
ações que lhe são contrárias -Ora, a lei moral em sua pureza e genuinidade (e
justamente é isto o que mais importa na prática) não deve ser buscada senão numa
Filosofia pura; donde, a necessidade de esta (a Metafísica) vir em primeiro lugar, pois
sem ela não pode haver filosofia moral. Nem a filosofia, que confunde princípios puros
com princípios práticos merece o nome de filosofia (pois esta distingue-se do
conhecimento racional comum, precisamente por expor numa ciência à parte o que este
conhecimento comum apreende apenas de modo confuso); merece menos ainda o nome
de filosofia moral, porque justamente devido a tal confusão prejudica a pureza da
moralidade e vai de encontro a seu próprio fim.
Não se pense todavia que o que se requer aqui se encontre já na propedêutica que o
ilustre WOLFF antepõe à sua filosofia moral, a saber na obra a que deu o título de
Filosofia prática universal, e que, por conseguinte, não há campo inteiramente novo
que explorar. Precisamente porque essa propedêutica devia ser uma filosofia prática
universal, considerou ela, não uma vontade de qualquer espécie particular, como seria,
por exemplo, uma vontade determinada, não por motivos empíricos, mas só por
princípios a priori, e que pudesse ser denominada vontade pura, mas o querer em geral,
com todas as ações e condições que lhe convém dentro deste significado geral;
distingue-se pois da Metafísica dos costumes, do mesmo modo que a Lógica geral se
distingue da Filosofia transcendental: a Lógica geral expõe as operações e regras do
pensamento em geral, ao passo que a Filosofia transcendental expõe unicamente as
operações e regras particulares do pensamento puro, ou seja, do pensamento, por meio
do qual os objetos são conhecidos inteiramente a priori. É que a Metafísica dos
costumes deve indagar a idéia e os princípios de uma vontade pura possível, e não as
ações e condições do humano querer em geral, as quais, em sua maioria, são tomadas
da Psicologia. O fato de na Filosofia prática geral se falar igualmente (391) (embora
sem razão) de leis morais e de dever não constitui objeção contra o que afirmo. Com
efeito, os autores dessa ciência permanecem fiéis, neste ponto, à idéia que dela formam;
não distinguem, entre os princípios de determinação, aqueles que, como tais, são
representados absolutamente a priori pela só razão e são propriamente morais, daqueles
que são empíricos, e que o entendimento erige em conceitos gerais por um simples
confronto das experiências; consideram-nos, ao invés, sem atentarem na diferença de
suas origens, apenas segundo seu número maior ou menor (pois os encaram como sendo
todos da mesma espécie) e formam assim seu conceito de obrigação. Na verdade, este
conceito é tudo menos moral; mas é o único que se pode esperar de uma filosofia que,
sobre a origem de todos os conceitos práticos possíveis, não decide de maneira nenhuma
se se produzem a priori ou só a posteriori.
Ora, propondo-me publicar, um dia, uma Metafísica dos costumes, faço-a preceder deste
opúsculo que lhe serve de fundamentação. Decerto não há, um rigor, outro fundamento
em que da possa assentar, de não seja a Crítica de uma razão pura prática, do mesmo
modo que, para fundamentar a Metafísica, se requer a Crítica da razão pura especulativa
por mim já publicada. Mas, em parte, a primeira destas Críticas não é de tão extrema
necessidade como a segunda, porque em matéria moral a razão humana, mesmo entre o comum dos mortais, pode ser facilmente levada a alto grau de exatidão e de perfeição,
ao passo que no seu uso teorético,mas puro, da é totalmente dialética; e, em parte, no
que concerne à Crítica de uma razão pura prática, para que ela seja completa, reputo
imprescindível que se mostre ao mesmo tempo a unidade da razão prática e da razão
especulativa num princípio comum; pois que, em última instância, só pode haver uma e
a mesma razão, e só na aplicação desta há lugar para distinções. Ora, não me seria
possível aqui realizar um trabalho tão esmiuçado e completo, sem introduzir
considerações de ordem inteiramente diferente e sem lançar a confusão no ânimo do
leitor. Por isso, em vez de dar a este livrinho o título de Crítica da razão pura prática,
denominei-o Fundamentação da Metafísica dos costumes.
Mas, porque, em terceiro lugar, uma Metafísica dos costumes, não obstante o que o
título comporta de assustador, pode entanto ser exposta em forma popular e adequada à
inteligência do vulgo, afigura-se-me útil publicar à parte este trabalho preliminar, no
qual são assentes os fundamentos, (392) para posteriormente não me ver obrigado a
imiscuir sutilezas, inevitáveis em semelhante matéria, a doutrinas de mais fácil
compreensão.
A presente Fundamentação não é mais do que a pesquisa e a determinação do princípio
supremo da moralidade, o bastante para constituir um todo completo, separado e
distinto de qualquer outra investigação moral. Certamente minhas afirmações sobre tão
momentoso problema, e que até ao presente não foi tratado de modo satisfatório, muito
pelo contrário, receberiam ampla e elucidativa confirmação, se o princípio em questão
fosse aplicado a todo o sistema, mercê do poder de explicação suficiente que ele em
tudo manifesta; vi-me porém obrigado a renunciar a esta vantagem, que, no fundo,
estaria mais de acordo com o meu amor próprio do que com o interesse geral, uma vez
que a facilidade de aplicação de um princípio bem como sua aparente suficiência não
fornecem prova absolutamente segura de sua exatidão, antes, pelo contrário, suscitam
em nós certa atitude de parcialidade capaz de nos induzir a não examiná-lo e apreciá-lo
rigorosamente por si mesmo, sem atender às conseqüências.
Segui, neste opúsculo, o método que penso ser o mais conveniente, quando pretendemos
elevar-nos analiticamente do conhecimento vulgar à determinação do princípio supremo
do mesmo, e, depois, por caminho inverso, tornar a descer sintèticamente do exame
deste princípio e de suas origens ao conhecimento vulgar, onde se verifica sua
aplicação. A divisão da obra é pois a seguinte:
1) Primeira secção: Passagem do conhecimento racional comum da moralidade ao
conhecimento filosófico.
2) Segunda secção: Passagem da filosofia moral popular à Metafísica dos costumes.
3) Terceira secção:Último passo da Metafísica dos costumes à Crítica da razão pura
prática.
Como é possível um imperativo categórico ?
O ser racional pertence, como inteligência, ao mundo inteligível, e só enquanto causa
eficiente pertencente a este mundo, ele dá o nome de vontade à sua causalidade. Por
outro lado, ele tem ainda consciência de si mesmo, como fazendo parte cio mundo
sensível, no qual suas ações são consideradas como simples manifestações fenomenais
dessa causalidade; é-lhe todavia impossível compreender como são possíveis estas
ações provenientes de uma causalidade que não conhecemos; é, pois, forçado a encarar
suas ações, enquanto pertencentes ao mundo sensível, como determinadas por outros
fenômenos, a saber, por desejos e inclinações. Se eu fosse membro unicamente do
mundo inteligível, minhas ações seriam perfeitamente conformes ao princípio da
autonomia da vontade pura; se eu fosse apenas parte do mundo sensível, elas deveriam
ser encaradas como inteiramente conformes à lei natural dos desejos e das inclinações, e
por conseguinte à heteronímia da natureza. (No primeiro caso, as minhas ações
estribariam no princípio supremo da moral; no segundo caso, no princípio da
felicidade). Mas, dado que o mundo inteligível contém o fundamento do mundo sensível
e, conseqüentemente, também das leis do mesmo, e uma vez que relativamente à minha
vontade (que pertence inteiramente ao mundo inteligível), ele é um princípio imediato
de legislação e, portanto, deve (454) também ser pensado como tal, eu, como inteligível,
embora seja, por outra parte, um ser pertencente ao mundo sensível, deverei reconhecerme
sujeito à lei do primeiro, isto é, a razão, que contém esta lei na idéia da liberdade, e
portanto sujeito igualmente à autonomia da vontade; conseqüentemente, deverei
considerar as leis do mundo inteligível como imperativos para mim, e, como deveres, as
ações conformes a este princípio.
Deste modo, são possíveis imperativos categóricos, pelo motivo de a idéia da liberdade
me fazer membro de um mundo inteligível. Donde resulta que, se eu fosse apenas isso,
todas as minhas ações seriam sempre conformes à autonomia da vontade; como porém,
ao mesmo tempo, me considero como membro do mundo sensível, é preciso dizer que
elas devem ser conformes; este "dever" categórico representa uma proposição sintética a
priori, pois que a uma vontade influenciada por desejos sensíveis acresce ainda a idéia
desta mesma vontade, mas enquanto pertencente ao mundo inteligível, ou seja, pura e
prática por si mesma, a qual contém a condição suprema da primeira segundo a razão;
pouco mais ou menos, do mesmo modo que às intuições do mundo sensível se
acrescentam os conceitos do entendimento, que por si mesmos nada mais significam do
que a forma de uma lei em geral, e que, por isso, tornam possíveis proposições sintéticas
a priori, sobre as quais repousa todo conhecimento de uma natureza.
O uso prático, que os homens comumente fazem da razão, confirma a exatidão desta
dedução. Não existe ninguém, nem sequer o pior celerado, contanto que esteja
habituado a servir-se da razão, que, ao lhe serem apresentados exemplos de lealdade nas
intenções, de perseverança na observância de máximas boas, de simpatia e de
benevolência universal (tudo isto ligado ainda a grandes sacrifícios de vantagens e de bem-estar), não deseje sentir-se também ele possuído de tais sentimentos. Ele não pode,
sem dúvida, e unicamente movido de suas inclinações e impulsos, realizar este ideal em
sua pessoa; mas nem por isso deixa de sentir o profundo desejo de se libertar dessas
inclinações que lhe são gravosas. Mostra, por essa forma, que, com uma vontade imune
dos impulsos da sensibilidade, ele se transporta com o pensamento a uma ordem de
coisas inteiramente diversa daquela que constitui seus desejos no campo da
sensibilidade; pois que de tal aspiração não pode esperar nenhuma satisfação de seus
apetites, nem por conseguinte nenhum estado capaz de contentar alguma de suas
inclinações reais ou imaginárias (uma vez que, por essa forma, a própria idéia, que lhe
provoca o desejo, perderia sua preeminência); ele não pode esperar daí senão um maior
valor intrínseco (455) de sua pessoa. Ora, ele crê ser essa pessoa melhor, quando se
situa no ponto de vista de membro do mundo inteligível, para o qual o arrasta
forçadamente a idéia da liberdade, isto é, a independência relativamente às causas
determinantes do mundo sensível; neste ponto de vista, ele tem consciência de uma boa
vontade que, segundo sua própria confissão, constitui a lei para a vontade má, a que está
sujeito enquanto membro do mundo sensível: lei, cuja autoridade ele reconhece,
embora a transgrida. O dever moral é, pois, propriamente o querer necessário para todo
membro de um mundo inteligível, e deve ser concebido por este como dever apenas na
medida em que ele se considera ao mesmo tempo como membro do mundo sensível.
Do extremo limite de toda filosofia prática
Todos os homens se julgam livres em sua vontade. Daí procedem todos os juízos sobre
as ações, declarando quais elas deveriam ter sido, embora não tenham sido tais.
Todavia, esta liberdade não é um conceito da experiência, nem o pode ser, porque este
conceito permanece sempre, embora a experiência mostre o contrário daquelas
exigências que, na suposição da liberdade, são representadas como necessárias. Por
outro lado, é igualmente necessário que tudo quanto sucede seja infalivelmente
determinado segundo as leis da natureza, e esta necessidade natural não é também um
conceito da experiência, precisamente por ser um conceito que implica em si o conceito
de necessidade, por conseguinte o de um conhecimento a priori. Mas este conceito de
uma natureza é confirmado pela experiência, e deve ser inevitavelmente pressuposto, se
é que deve ser possível a experiência, ou seja, um conhecimento coerente dos objetos
dos sentidos segundo leis universais. Pelo que, a liberdade é somente uma idéia da
razão, cuja realidade objetiva é cm si duvidosa, ao passo que a natureza é um conceito
do entendimento, que prova e deve necessariamente provar sua realidade por meio de
exemplos tomados da experiência.
É esta, sem dúvida, a origem de uma dialética da razão, pois no concernente à vontade,
a liberdade que se lhe atribui, parece estar em oposição com a necessidade dá natureza;
todavia, embora a razão situada entre estas duas direções, do ponto de vista
especulativo encontre o caminho da necessidade natural mais desimpedido e mais
praticável que o da liberdade, todavia, do ponto de vista prático, a senda da (456)
liberdade é a única onde seja possível lazer uso da razão em nosso comportamento; daí
o ser impossível, tanto à mais sutil filosofia quanto à mais vulgar razão, pôr em dúvida a
liberdade, por meio de sofismas. Deve, pois, a razão admitir não ser possível encontrar
nenhuma verdadeira contradição entre a liberdade e a necessidade natural das mesmas
ações humanas, porque não lhe é dado renunciar ao conceito de natureza, como nem ao
de liberdade.
Entretanto, esta aparente contradição deve ser desfeita de modo convincente, embora
nunca se possa vir a compreender como seja possível a liberdade. Com efeito, se o
conceito da liberdade fosse contraditório consigo ou com a idéia da natureza, que é
igualmente necessária, deveria ela (a liberdade) ser sacrificada em proveito da
necessidade natural.
Mas é impossível subtrair-.se a esta contradição, se o sujeito, que se supõe livre, se
concebesse a si mesmo, quando se denomina livre, no mesmo sentido ou precisamente
na mesma relação em que ele se supõe, relativamente à mesma ação, sujeito à lei da
natureza. Ê pois, uma tarefa, a que a filosofia especulativa não pode subtrair-se, a de
mostrar, ao menos, que aquilo que torna esta contradição ilusória é o fato de
concebermos o homem, quando qualificamos de livre, num sentido diferente e sob uma
relação diferente de quando o consideramos como sujeito, enquanto parte da natureza,
às leis desta mesma natureza, e que não só as duas relações podem acomodar-se uma
com a outra, senão que devem outrossim ser pensadas no mesmo sujeito como
necessariamente unidas; pois, de outro modo, não se explicaria por que deveríamos
sobrecarregar a razão com uma idéia que, embora consinta, sem contradição, em se unir
a outra suficientemente justificada, nos envolve todavia num embaraço que entrava
singularmente a razão em seu uso teorético. Mas semelhante tarefa compete
exclusivamente à filosofia especulativa, a qual por essa forma, deve abrir livre caminho
à filosofia prática. Não fica, pois à mercê do filósofo o cuidado de suprimir ou deixar
intacta esta aparente contradição; porque, neste último caso, a teoria é, sob este respeito,
um bonum vacans, do qual o fatalista pode com direito apossar-se, dele expulsando toda
moral como de uma pretensa propriedade, que ela possui sem título.
Todavia não se pode ainda aqui dizer que comece o campo da filosofia prática. Porque
ela não é, por forma alguma, qualidade para dirimir o debate, mas exige apenas da razão
especulativa que ponha termo ao litígio, em que ela se encontra envolvida em matéria
teorética, a fim de que (457) a razão prática possa gozar de repouso e segurança,
relativamente a intromissões externas que poderiam contestar-lhe o terreno onde ela
pretende estabelecer-se.
Mas a pretensão legítima, que tem a razão humana, mesmo a mais comum, à liberdade
da vontade, funda-se na consciência e na pressuposição admitida da independência da
razão a respeito de causas de determinação puramente subjetivas, o conjunto das quais
constitui o que pertence somente à sensação, por conseqüência o que recebeu o nome
gerai de sensibilidade. O homem, que de tal modo se considera como inteligência,
coloca-se, por isso mesmo, numa outra ordem de coisas, e, quando ele se concebe como
inteligência dotada de vontade, portanto de causalidade, põe-se em relação com
princípios determinantes de outra espécie inteiramente diferente, do que quando se
considera como um fenômeno do mundo sensível (o que ele, na verdade, também é) e
submete a sua causalidade, segundo uma determinação externa, a leis da natureza. Ora,
ele imediatamente dá conta que ambas as coisas podem, e até devem, dar-se ao mesmo
tempo. Pois, que uma coisa na ordem dos fenômenos (pertencente ao mundo sensível)
esteja sujeita a certas leis, das quais é independente como coisa ou como ser em si
mesmo, não contem em si a mínima contradição; que o próprio homem deva conceberse
e representar-se sob este duplo aspecto, é exigência que se funda, no que concerne ao
primeiro ponto, na consciência de si como objeto afetado pelos sentidos, e, no que
respeita ao segundo ponto, na consciência de si como inteligência, isto é, como ser
independente, no uso da razão, das impressões sensíveis (portanto, como pertencente ao
mundo inteligível). Daqui deriva que o homem se atribui uma vontade que não consente em pôr no seu
ativo coisa alguma do que pertença unicamente a seus desejos e inclinações, e que, ao
invés, concebe como possíveis para ela, ou melhor, como necessárias, ações que não
podem ser executadas senão mediante uma renúncia a todos os desejos e incitamentos
sensíveis. A causalidade de tais ações reside nele enquanto inteligência e nas leis dos
efeitos e das ações que são conformes aos princípios de um mundo inteligível, do qual
mundo, todavia, ele nada mais sabe do que isto, que nele só a razão, e justamente a
razão pura, independente da sensibilidade, institui a lei. Além disso, como só enquanto
inteligência ele é o verdadeiro eu (ao passo que, enquanto homem, ele é só fenômeno
de si próprio), estas leis endereçam-se a ele imediatamente e categoricamente, de sorte
que tudo aquilo a que as inclinações e impulsos o incitam (portanto toda a natureza do
mundo (458) sensível), não pode causar dano às leis da sua vontade considerada como
inteligência. Mais ainda. ele não assume a responsabilidade destas inclinações e
tendências, nem as atribui ao seu verdadeiro eu, ou seja, à sua vontade; só se considera
responsável da complacência que poderia ter para com elas, se porventura lhes
concedesse alguma influência sobre suas máximas, com prejuízo das leis racionais da
vontade.
Introduzindo-se assim por meio do pensamento num mundo inteligível, a razão prática
não ultrapassa, de fato, seus limites; só os ultrapassaria, se quisesse, entrando neste
mundo, intuir-se, sentir-se nele. Isso não passa de uma concepção negativa em relação
ao mundo sensível, o qual não dá leis à razão na determinação da vontade; concepção
que só num ponto é positiva, a saber, que esta liberdade, como determinação negativa,
está ligada, ao mesmo tempo, a uma faculdade (positiva), e precisamente a uma
causalidade da razão, que denominamos vontade, isto é, à faculdade de agir de tal sorte
que o princípio das ações seja conforme ao caráter essencial de uma causa racional, ou
seja, à condição que a máxima erigida em lei seja universalmente válida. Mas, se a
razão quisesse ainda derivar do mundo inteligível um objeto da vontade, isto é, um
motivo, ultrapassaria, nesse caso, seus limites e teria a ilusão de conhecer uma coisa, da
qual, na realidade, nada conhece. Portanto, o conceito de um mundo inteligível nada
mais é que um ponto de vista, que a razão se vê obrigada a aceitar, fora dos fenômenos,
para se concebera si própria como prática: o que não seria possível, se as influências
da sensibilidade fossem determinantes para o homem, mas que todavia é necessário, se
é que não devemos contestar-lhe a consciência de si mesmo como inteligência, portanto
como causa racional e atuante por meio da razão, ou seja, livre em suas operações.
Semelhante concepção implica a idéia de uma outra ordem e de uma outra legislação
diferente da ordem e da legislação do mecanismo natural que se aplica ao mundo
sensível, e torna necessário o conceito de um mundo inteligível (isto é, o sistema total
dos seres racionais como coisas em si), mas sem a menor pretensão de ultrapassar aqui 0
pensamento daquilo que é simplesmente a condição formal do mesmo, ou seja, a
universalidade da máxima da vontade como lei e, portanto, a autonomia desta
faculdade, autonomia que só pode existir com a liberdade da mesma; ao passo que todas
as leis, que são determinadas por sua relação com um objeto, dão uma heteronímia que
só se encontra nas leis naturais e que só se pode referir ao mundo sensível.
A razão ultrapassaria todos os seus limites, se pretendesse explicar como é que uma
razão pura pode ser prática, o (459) que equivaleria exatamente a explicar de que
maneira a liberdade é possível. De fato, só podemos explicar aquilo que podemos reduzir a leis, cujo objeto pode ser
dado nalguma experiência possível. Ora, a liberdade é uma simples idéia, cuja realidade
não pode por forma alguma ser demonstrada por leis da natureza, e portanto também em
nenhuma experiência possível, e que, por isso mesmo que não se pode propor dela,
segundo qualquer analogia, um exemplo, nunca pode ser compreendida, nem sequer só
concebida. Ela vale apenas como suposição necessária da razão num ser que julga ter
consciência de possuir uma vontade, ou seja, uma faculdade muito diferente da simples
faculdade apetitiva (quero dizer: uma faculdade de se determinar a agir como
inteligência, portanto segundo leis da razão, independentemente dos instintos naturais).
Mas, onde cessa uma determinação segundo as leis da natureza, aí cessa também toda
explicação, e nada mais resta do que manter-se na defensiva, isto é, refutar as objeções
dos que pretendem haver penetrado mais profundamente na essência das coisas, e que,
por tal motivo, declaram ousadamente a liberdade impossível. Apenas se lhes pode
mostrar que a contradição, que eles pretendera haver descoberto, cm nada mais consiste
senão em que, para tornar a lei da natureza válida relativamente às ações humanas, eles
deveriam considerar necessariamente o homem como fenômeno; quando agora se exige
que eles devam concebê-lo, enquanto inteligência, também como uma coisa em si,
continuam todavia a considerá-lo sempre ainda como fenômeno; então, sem dúvida, o
fato de subtrair a causalidade do homem (isto é, sua vontade) às leis naturais do mundo
sensível num só e mesmo sujeito constituiria uma contradição; contudo, esta
contradição desapareceria, se eles quisessem refletir e, como seria de justiça, reconhecer
que, por detrás dos fenômenos, devem por certo existir (embora ocultas) as coisas em si,
as leis das quais não se pode pretender que sejam idênticas àquelas a que são sujeitas
suas manifestações fenomenais.
A impossibilidade subjetiva de explicar a liberdade da (460) vontade é idêntica à
impossibilidade de descobrir e de fazer compreender um interesse (*) que o homem
possa tomar pelas leis morais; e, não obstante, é fato que o homem toma realmente
interesse por elas, o primeiro do qual é em nós aquilo a que chamamos sentimento
moral, sentimento que por alguns, falsamente, é dado como sendo o critério de nosso
juízo moral quando, na verdade, deve ser antes considerado como o efeito subjetivo
exercido pela lei sobre a vontade, do qual só a razão subministra os princípios objetivos.
Para que um ser, que é, a um tempo, racional e afetado pela sensibilidade, queira o que
só a razão prescreve como .dever, é preciso que a razão tenha a faculdade de lhe
inspirar um sentimento de prazer ou de satisfação pelo cumprimento do dever, e,
conseguintemente, uma causalidade, pela qual determine a sensibilidade conformemente
a seus princípios. É porém, de fato, impossível compreender, isto é, explicar a priori,
como um simples pensamento, que em si não contém coisa alguma de sensível, pode
produzir um sentimento de prazer ou de repugnância; pois isto é uma espécie peculiar
de causalidade, da qual nada podemos determinar absolutamente a priori, mas para a
qual só podemos consultar a experiência. Mas, como esta não pode oferecer nenhuma
relação entre causa e efeito, a não ser entre dois objetos da experiência, e como aqui a
razão pura, unicamente por meio de idéias (que não subministram objetos para a
experiência), deve ser a causa de um efeito, que certamente se encontra na experiência,
por isso a nós homens e absolutamente impossível explicar como e por que a
universalidade da máxima como lei, e por conseguinte a moralidade, nos interessa.
Certo é apenas isto: que a moralidade não possui valor para nós pelo fato de interessar
(pois isto é heteronímia e dependência da razão prática a respeito da sensibilidade, ou
seja, a respeito de um (461) sentimento assente como princípio, no qual caso nunca
poderia estabelecer uma legislação moral); mas a moralidade apresenta interesse, porque tem valor para nós enquanto homens, porque deriva de nossa vontade, concebida
como inteligência, portanto do nosso verdadeiro eu; ora o que pertence ao puro
fenômeno é necessariamente subordinado pela razão à natureza da coisa em si.
(*) Interesse é aquilo pelo qual a razão se torna prática, isto é, se torna causa determinante da
vontade. Eis porque se diz apenas de um ser racional, que ele toma interesse por qualquer coisa,
ao passo que os seres irracionais sentem somente impulsos sensíveis. A razão toma interesse
imediato pela ação, só quando a validade universal da máxima desta ação é um princípio
suficiente de determinação da vontade. Só um interesse deste gênero é puro. Mas, se a razão não
pode determinar a vontade senão por meio de algum outro objeto do desejo, então ela não toma
pela ação senão um interesse mediato; e, como a razão não pode descobrir por si só, sem a
experiência, nem objetos da vontade, nem um sentimento especial que sirva a esta de
fundamento, este último interesse não pode ser senão um interesse empírico, nunca um puro
interesse racional. O interesse lógico da razão (que a leva a aumentar seus conhecimentos) nunca
é imediato, mas pressupõe fins, aos quais se refere o uso desta faculdade.
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Portanto, a questão: "como é possível um imperativo categórico ?" só pode ser
verdadeiramente respondida, na medida em que seja possível indicar a única suposição
donde depende a sua possibilidade, ou seja, a idéia da liberdade, e em que se possa
também enxergar a necessidade desta suposição, o que é suficiente para o uso prático
da razão, isto é, para nos convencermos da validade deste imperativo e,
conseguintemente, também da lei moral. Mas o que nenhuma razão humana logrará
jamais descobrir é a maneira como tal suposição seja possível. Supondo que a vontade
de uma inteligência é livre, segue-se, como conseqüência inevitável, a autonomia da
mesma, como sendo a única condição formal, mediante a qual ela pode ser determinada.
Pressupor esta liberdade da vontade (sem cair em contradição com o princípio da
necessidade natural da ligação dos fenômenos cio mundo sensível) não é só
absolutamente possível (como a filosofia especulativa o pode mostrar), mas é
igualmente necessário para um ser racional, que tem consciência de sua causalidade por
meio da razão, portanto de uma vontade (distinta dos desejos) de admiti-la praticamente,
isto é, em idéia, como condição de todas as suas ações voluntárias. Como é que a razão
pura sem outro impulso, venha ele donde vier, possa por si mesma ser prática, por
outras palavras, como é que o simples princípio da validade universal de todas as suas
máximas como leis (o qual seria certamente a forma de uma razão pura prática), sem
matéria (objeto) alguma da vontade, pela qual se possa antecipadamente tomar
interesse, possa por si mesmo subministrar um móbil de ação e suscitar um interesse
capaz de ser denominado puramente moral; ou, por outras palavras, como é que uma
razão pura possa ser prática: explicar isto é inteiramente impossível a qualquer razão
humana, e é baldado todo o trabalho despendido para encontrar uma elucidação.
É exatamente a mesma coisa que se eu procurasse descobrir como é possível a própria
liberdade como causalidade (462) de uma vontade. Com efeito, aqui ponho de parte o
princípio de explicação filosófica, sem ter outro a que recorrer. Poderia, é certo,
aventurar-me no mundo inteligível que todavia me resta, no mundo das inteligências;
mas, embora tenha dele uma idéia, e bem fundada, não tenho todavia o mínimo
conhecimento do mesmo, e nunca o poderei alcançar, malgrado todos os esforços de
minha razão natural. Esta idéia significa apenas alguma coisa, que continua subsistindo,
depois de eu ter excluído dos princípios de determinação de minha vontade tudo quanto
pertence ao mundo sensível, de maneira que restrinja simplesmente o princípio dos
impulsos derivados do campo da sensibilidade, limitando este campo e mostrando que
ele não compreende em si o todo do todo, e que fora dele muitas outras coisas ainda
existem; mas estas muitas coisas, não as conheço. Da razão pura, que concebe este ideal, não me resta, após haver leito abstração de toda matéria, isto é, de todo
conhecimento dos objetos, senão a forma, ou seja, a lei prática da validade universal das
máximas e, em conformidade com esta, a concepção da razão, considerada em
relação a um mundo inteligível puro, como causa eficiente possível, isto é, como causa
determinante da vontade; o impulso deve aqui faltar completamente; a não ser que esta
idéia de um mundo inteligível não seja ela mesma o impulso, ou a coisa pela qual a
razão originariamente toma interesse; mas explicar isto, é justamente o problema que
não logramos resolver.
Aqui está, pois, o limite extremo de toda investigação moral. Determiná-lo é já de
grande importância, para que a razão, por um lado, não se embrenhe no mundo sensível,
com prejuízo da moralidade, à cata do motivo supremo de determinação e de um
interesse, sem dúvida; compreensível, mas empírico; e, por outro lado, não bata as asas
em vão, sem mudar de lugar, neste espaço de conceitos transcendentes, vazio para ela,
que se chama o mundo inteligível, nem se perca no meio de quimeras. Além disso, a
idéia de um mundo inteligível puro, concebido como um todo formado por todas as
inteligências, de que nós mesmos, como seres racionais, fazemos parte (conquanto, por
outro lado, pertençamos, ao mesmo tempo, ao mundo sensível), continua sendo sempre
uma idéia utilizável e lícita cm benefício de uma crença racional, se bem que todo saber
se confine dentro dos limites deste mundo. E mercê do magnífico ideal de um reino
universal dos fins cm si (dos seres racionais), ao qual não podemos pertencer como
membros senão tendo o cuidado de nos portar de acordo com as máximas da liberdade,
como se elas fossem leis da «463) natureza, a idéia do mundo inteligível é capaz de
produzir em nós vivo interesse pela lei moral.
Observação final
O uso especulativo da razão, relativamente à natureza, conduz à absoluta necessidade
de uma causa suprema do mundo; o uso prático da razão, relativamente à liberdade,
conduz também a uma necessidade absoluta, mas que é só a necessidade das leis das
ações de um ser racional como tal. Ora, é um principio essencial de todo uso da nossa
razão, estimular o conhecimento, que ela nos dá, até à consciência de sua necessidade
(pois sem isso não seria conhecimento da razão). Mas a mesma razão está igualmente
sujeita a uma restrição não menos essencial, que consiste em a razão ser incapaz de
perceber a necessidade daquilo que é e acontece, e do que deve acontecer, se não
assenta como princípio uma condição, sob a qual a coisa é, acontece ou deve acontecer.
Deste modo, porém, mercê da constante busca da 'condição, a razão não pode ver senão
que sua satisfação é sempre adiada. Pelo que, ela busca sem descanso o necessário
incondicionado, e é obrigada a admiti-lo, sem meio algum de o tornar inteligível a si,
sentindo-se já bastante feliz em só poder descobrir o conceito que se ajusta com esta
suposição. Não se deve, portanto, censurar a nossa dedução do princípio supremo da
moralidade; deveria, antes, criticar-se a razão humana em geral, por não lograrmos
explicar uma lei prática incondicionada (qual deve ser o imperativo categórico) em sua
necessidade absoluta. Não nos podem, pois, censurar, por não querermos fazer isto
mediante uma condição, ou seja mediante algum interesse estabelecido como princípio,
porque, nesse caso, não seria mais uma lei moral, isto é, uma lei suprema da liberdade.
Assim, se não compreendemos verdadeiramente a necessidade prática incondicionada
do imperativo moral, compreendemos todavia a sua incompreensibilidade, e é tudo
quanto se pode exigir racionalmente de uma filosofia que se empenha por alcançar, nos
princípios, os limites da razão humana.

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