Aula 5
Excertos da Política –
Aristóteles
Da Origem do Estado
O Estado e seu Governo
Como sabemos, todo Estado é uma sociedade, a esperança
de um bem,
seu princípio, assim como de toda associação, pois
todas as ações dos
homens têm por fim aquilo que consideram um bem. Todas
as sociedades,
portanto, têm como meta alguma vantagem, e aquela que
é a principal e
contém em si todas as outras se propõe a maior
vantagem possível.
Chamamo-la Estado ou sociedade política.
Enganam-se os que imaginam que o poder de um rei ou de
um magistrado
de República só se diferencie do de um pai de família
e de um senhor pelo número maior de súditos e que não há nenhuma diferença
específica entre seus
poderes. Segundo eles, se tem poucos súditos é um
senhor; se tem alguns a
mais é um pai de família; se tiver ainda mais é um rei
ou um magistrado de
República. Como se não houvesse diferença entre uma
grande família e um
pequeno Estado, nem entre um rei e um magistrado de
República. A distinção
seria que um rei governa sozinho perpetuamente,
enquanto um magistrado de
República comanda e obedece alienadamente, em virtude
da Constituição.
Tudo isso, porém, é errado, como veremos ao examinar
esta matéria segundo
o método que usamos em nossas outras obras'.
Como não podemos conhecer melhor as coisas compostas
do que
decompondo-as e analisando-as até seus mais simples
elementos,
comecemos por detalhar assim o Estado e por examinar a
diferença das
partes, e procuremos saber se há uma ordem conveniente
para tratar de cada
uma delas.
A Formação da Cidade
Nesta como em qualquer outra matéria, uma excelente
atitude consiste em
remontar à origem. É preciso, inicialmente, reunir as
pessoas que não podem
passar umas sem as outras, coma o macho e a fêmea para
a geração. Esta
maneira de se perpetuar não é arbitrária e não pode,
na espécie humana
assim como entre os animais e as plantas, efetuar-se
senão naturalmente. É
para a mútua conservação que a natureza deu a um o
comando e impôs a
submissão ao outro.
Pertence também ao desígnio da natureza que comande
quem pode,
por sua inteligência, tudo prover e, pelo contrário,
que obedeça quem não
possa contribuir para a prosperidade comum a não ser
pelo trabalho de
seu corpo. Esta partilha é salutar para o senhor e
para o escravo.
A condição da mulher difere da do escravo. A natureza,
com efeito, não
age com parcimônia, como os artesãos de Delfos que
forjam suas facas para
vários fins; ela destina cada coisa a um uso especial;
cada instrumento que só
tem o seu uso é o melhor para ela. Somente entre os
bárbaros a mulher e o
escravo estão no mesmo nível. Assim, esses povos não
têm o atributo que
importa naturalmente a superioridade e sua sociedade
só é composta de escravos dos dois sexos. Foi isso que fez com que o poeta
acreditasse que os
gregos tinham, de direito, poder sobre os bárbaros, como se, na natureza,
bárbaros e escravos se confundissem. A principal
sociedade natural, que é a
família, formou-se, portanto, da dupla reunião do homem
e da mulher, do
senhor e do escravo. O poeta Hesíodo tinha razão ao
dizer que era preciso
antes de tudo A casa, e depois a mulher e o boi
lavrador, já que o boi
desempenha o papel do escravo entre os pobres. Assim,
a família é a
sociedade cotidiana formada pela natureza e composta
de pessoas que
comem, como diz Carondas, o mesmo pão e se esquentam,
como diz
Epimênides de Creta, com o mesmo fogo.
A sociedade que em seguida se formou de várias casas
chama-se aldeia e
se assemelha perfeitamente à primeira sociedade
natural, com a diferença de
não ser de todos os momentos, nem de uma freqüentação
tão contínua. Ela
contém as crianças e as criancinhas, todas alimentadas
com o mesmo leite.
De qualquer modo, trata-se de uma colônia tirada da
primeira pela natureza.
Assim, as Cidades inicialmente foram, como ainda hoje
o são algumas
nações, submetidas ao governo real, formadas que eram
de reuniões de
pessoas que já viviam sob um monarca. Com efeito, toda
família, sendo
governada pelo mais velho como que por um rei,
continuava a viver sob a
mesma autoridade, por causa da consangüinidade. Este é
o pensamento de
Homero, quando diz:
Cada um, senhor absoluto de seus filhos e de suas
mulheres,
Distribui leis a todos...
Isso ocorria porque nos primeiros tempos as famílias
viviam dispersas. É
ainda por esta razão que todos os homens que
antigamente viveram e ainda
vivem sob reis dizem que os deuses vivem da mesma
maneira, atribuindo-lhes
o governo das sociedades humanas, já que os imaginam
sob a forma do
homem.
O Homem, "Animal Cívico"
A sociedade que se formou da reunião de várias aldeias
constitui a Cidade,
que tem a faculdade de se bastar a si mesma, sendo
organizada não apenas para conservar a existência, mas também para buscar o
bem-estar. Esta
sociedade, portanto, também está nos desígnios da
natureza, como todas as
outras que são seus elementos. Ora, a natureza de cada
coisa é precisamente
seu fim2. Assim, quando um ser é perfeito, de qualquer
espécie que ele seja -
homem, cavalo, família -, dizemos que ele está na natureza.
Além disso, a coisa
que, pela mesma razão, ultrapassa as outras e se
aproxima mais do objetivo
proposto deve ser considerada a melhor. Bastar-se a si
mesma é uma meta a
que tende toda a produção da natureza e é também o
mais perfeito estado. É,
portanto, evidente que toda Cidade está na natureza e
que o homem é
naturalmente feito para a sociedade política. Aquele
que, por sua natureza e
não por obra do acaso, existisse sem nenhuma pátria
seria um indivíduo
detestável, muito acima ou muito abaixo do homem,
segundo Homero:
Um ser sem lar, sem família e sem leis.
Aquele que fosse assim por natureza só respiraria a
guerra, não sendo
detido por nenhum freio e, como uma ave de rapina,
estaria sempre pronto
para cair sobre os outros.
Assim, o homem é um animal cívico, mais social do que
as abelhas e os
outros animais que vivem juntos. A natureza, que nada
faz em vão, concedeu
apenas a ele o dom da palavra, que não devemos
confundir com os sons da
voz. Estes são apenas a expressão de sensações
agradáveis ou
desagradáveis, de que os outros animais são, como nós,
capazes. A natureza
deu-lhes um órgão limitado a este único efeito; nós,
porém, temos a mais,
senão o conhecimento desenvolvido, pelo menos o
sentimento obscuro do bem
e do mal, do útil e do nocivo, do justo e do injusto,
objetos para a manifestação
dos quais nos foi principalmente dado o órgão da fala.
Este comércio da
palavra é o laço de toda sociedade doméstica e civil.
O Estado, ou sociedade política, é até mesmo o
primeiro objeto a que se
propôs a natureza'. O todo existe necessariamente
antes da parte. As
sociedades domésticas e os indivíduos não são senão as
partes integrantes da
Cidade, todas subordinadas ao corpo inteiro, todas
distintas por seus poderes
e suas funções, e todas inúteis quando desarticuladas,
semelhantes às mãos e
aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam
o nome e a
aparência, sem a realidade, como uma mão de pedra. O
mesmo ocorre com
os membros da Cidade: nenhum pode bastar-se a si
mesmo. Aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a
ficar com eles, ou é um
deus, ou um bruto. Assim, a inclinação natural leva os
homens a este gênero de
sociedade.
O primeiro que a instituiu trouxe-lhe o maior dos
bens. Mas, assim como o
homem civilizado é o melhor de todos os animais,
aquele que não conhece nem
justiça nem leis é o pior de todos. Não há nada,
sobretudo, de mais intolerável
do que a injustiça armada. Por si mesmas, as armas e a
força são indiferentes
ao bem e ao mal: é o princípio motor que qualifica seu
uso. Servir-se delas sem
nenhum direito e unicamente para saciar suas paixões
rapaces ou lúbricas é
atrocidade e perfídia. Seu uso só élícito para a
justiça. O discernimento e o
respeito ao direito formam a base da vida social e os
juízes são seus primeiros
órgãos.
(....)
Do Cidadão
Para bem conhecer a Constituição dos Estados e suas
espécies, é preciso
em primeiro lugar saber o que é um Estado, pois nem
sempre se está de acordo
se se deve imputar fatos ao Estado ou aos que o
governam, quer como chefes
únicos, quer num grupo menos numeroso do que o resto
da Cidade. Ora, o
Estado é o sujeito constante da política e do governo;
a constituição política não
é senão a ordem dos habitantes que o compõem.
Como qualquer totalidade, o Estado consiste numa
multidão de partes: é a
universalidade dos cidadãos. Comecemos, pois, por
examinar o que devemos
entender por cidadão e quem podemos qualificar assim,
pois se trata de uma
denominação equívoca e nem todos são unânimes sobre a
sua aplicação.
Alguém que é cidadão numa democracia não o é numa
oligarquia.
O Critério da
Cidadania
Falemos aqui apenas dos cidadãos de nascimento, e não
dos naturalizados.
Não é a residência que constitui o cidadão: os
estrangeiros e os escravos
não são "cidadãos", mas sim
"habitantes".
Tampouco é a simples qualidade de julgável ou o
direito de citar em justiça.
Para isso, basta estar em relações de negócios e ter
ao mesmo tempo alguma
coisa a resolver. Mesmo assim, há muitos lugares em
que os estrangeiros não
são admitidos nas audiências dos tribunais senão
quando apresentam uma
caução. Não participam, então, a não ser de um modo
imperfeito, dos direitos
da Cidade.
É mais ou menos o mesmo que acontece com as crianças
que ainda não
têm idade para serem inscritas na função cívica e com
os velhos que, pela
idade, estão isentos de qualquer serviço. Não podemos
dizer simplesmente que
eles são cidadãos; não são senão supranumerários; uns
são cidadãos em
esperança por causa de sua imperfeição, outros são
cidadãos rejeitados por
causa de sua decrepitude. Terão o nome que se quiser:
o nome não importa
desde que sejamos compreendidos. Procuramos aqui o
cidadão puro, sem
restrições nem modificações.
Com mais forte razão, devemos deliberadamente riscar
desta lista os
infames e os banidos.
Portanto, o que constitui propriamente o cidadão, sua
qualidade
verdadeiramente característica, é o direito de voto
nas Assembléias e de
participação no exercício do poder público em sua
pátria.
Há dois tipos de poderes: uns são temporários, só são
atribuídos por certo
tempo e não se podem obter duas vezes em seguida; os
outros não têm tempo
fixo, como o de julgar nos tribunais ou de votar nas
assembléias.
Objetar-se-á, talvez, que estes últimos não são
verdadeiros poderes e não
participam de modo algum do governo. Mas seria
ridículo contestar esta
denominação de quem se pronuncia sobre os interesses
maiores do Estado.
Aliás, pouco importa, essa é apenas uma questão de
palavras. Não possuímos,
com efeito, um termo comum sob o qual possamos colocar
a função de juiz e a
de membro da Assembléia. Será, se se quiser, um poder
sem nome. Ora,
chamamos "cidadão" quem quer que seja
admitido nessa participação e é por ela, principalmente, que o distinguimos de
qualquer outro habitante.
Convém ainda notar que nas coisas cujo sujeito pertence
a espécies
diferentes, sem outra relação entre si, senão que uma
é a primeira, a outra a
segunda e assim por diante, não há absolutamente nada
ou muito pouco em
comum. É o que se observa nas formas de governo: são
de diferentes espécies,
umas primitivas, outras posteriores. Entre estas
últimas devem ser contadas as
corrompidas e degeneradas, que vêm necessariamente
depois das que
permaneceram sãs e intactas. (Explicaremos mais
adiante em que consiste a
degenerescência9.) Portanto, o cidadão não pode ser o
mesmo em todas as
formas de governo. É sobretudo na democracia que é
preciso procurar aquele
de que falamos; não que ele não possa ser encontrado
também nos outros
Estados, mas neles não se acha necessariamente. Em
alguns deles, o povo não
é nada. Não há Assembléia geral, pelo menos ordinária,
mas simples
convocações extraordinárias. Tudo se decide pelos
diversos magistrados,
segundo suas atribuições. Na cerimônia, por exemplo,
os éforos tratam dos
contratos; os senadores, dos homicídios; as outras magistraturas,
das outras
matérias. Acontece o mesmo em Cartago, onde alguns
magistrados decidem
sobre tudo.
A definição do cidadão, portanto, é suscetível de
maior ou menor extensão,
conforme o gênero do governo. Há alguns em que o
número e o poder dos juízes
e dos membros da Assembléia não é ilimitado, mas
restrito pela constituição. O
direito de julgar e deliberar cabe a todos ou apenas a
alguns, e isso sobre todas
as matérias, ou somente sobre algumas. Por aí se pode
ver a quem convém o
nome de cidadão em cada lugar. É cidadão aquele que,
no país em que reside,
é admitido na jurisdição e na deliberação. É a
universalidade deste tipo de
gente, com riqueza suficiente para viver de modo
independente, que constitui a
Cidade ou o Estado.
Comumente, o costume é dar o nome de cidadão apenas
àquele que
nasceu de pais cidadãos. De nada serviria que o pai o
fosse, se a mãe não for.
Em alguns lugares, vai-se ainda mais longe, até dois
avôs ou a um grau maior.
Surge, então, a dificuldade de saber como serão eles
mesmos cidadãos, este
terceiro e este quarto avô. Górgias de Leonte dizia,
não se sabe se a sério ou
por brincadeira, que, assim como os caldeireiros fazem
caldeiras, assim
também os habitantes de Larissa fabricavam
larissianos, e que era preciso que os larissianos fabricados tivessem os seus
fabricantes. De acordo com nossa
definição, a coisa é simples. Se participarem do poder
público, serão cidadão.
A outra definição, que exige que se tenha nascido de
um cidadão ou de uma
cidadã, excluiria desta categoria, em contrapartida,
os primeiros habitantes e os
próprios fundadores da Cidade.
Há maior incerteza a respeito daqueles a quem foi
concedido direito à
cidadania durante uma revolução, como fez Clístenes em
Atenas, quando, após
a expulsão dos tiranos, formou várias tribos novas de
estrangeiros e até de
escravos imigrados. Quanto a eles, a questão não é
saber se são cidadãos,
mas se se tornaram tais com justiça ou não. Podemos,
também, duvidar se eles
se tornaram cidadãos de forma legal, não existindo
então nenhuma diferença
entre a ilegalidade e o erro. Existe, no entanto, uma
distinção muito real. Com
efeito, vemos pessoas que alcançam a magistratura por
meios ilegais, e não
deixamos, porém, de chamá-los de magistrados, mas
magistrados ilegítimos.
Sendo, portanto, o cidadão caracterizado pelo atributo
do poder (pois é pela
participação no poder público que o definimos), nada
impede de contar entre os
cidadãos as criaturas de Clístenes.
A questão de sua cidadania depende também do outro
problema anunciado
acima, se devemos ou não imputar ao Estado a sua
admissão, o que não é fácil
de decidir quando o Estado passa da oligarquia ou da
tirania para a
democracia. Pois então o novo Estado não quer nem
pagar as dívidas
contraídas anteriormente, considerando-as como feitas não
pela Cidade, mas
pelo tirano que recebeu o dinheiro, nem quer manter os
outros compromissos,
pretendendo que certos Estados só subsistem por
violência e não pelo interesse
comum. Portanto, se o mesmo vício ocorrer na
democracia, será preciso dizer
de seus atos o que se diz dos da oligarquia e da
monarquia absoluta ou tirânica
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