Excertos de O que é filosofia- Caio Prado
Jr.
Não precisamos buscar na infinidade de conceitos de
"Filosofia" — talvez um para cada
autor de certa expressão, e que à vagueza das
formulações acrescentam às vezes até posições
contraditórias —não precisamos procurar aí a incerteza
e imprecisão que reinam e, sobretudo
em nossos dias, no que concerne o objeto da
especulação filosófica. Muito mais ilustrativa é a
consulta aos, textos filosóficos ou qualquer exposição
ou análise do desenvolvimento
histórico do assunto. De tudo se trata, pode-se dizer,
ou se tem tratado na "Filosofia", e até os
mesmos assuntos, ou aparentemente os mesmos, são
considerados em perspectivas de tal
modo apartadas uma das outras que não se combinam e
entrosam entre si, tornando-se
impossível contrastá-las. Para alguns, essa situação é
não apenas normal, mas plenamente
justificável.
A Filosofia seria isso mesmo: uma especulação infinita
e desregrada em torno de qualquer
assunto ou questão, ao sabor de cada autor, de suas
preferências e mesmo de seus humores.
Há mesmo quem afirme não caber à Filosofia
"resolver", e sim unicamente sugerir questões e
propor problemas, fazer perguntas cujas respostas não
têm maior interesse, e com o fim
unicamente de estimular a reflexão, aguçar a
curiosidade. E já se afirmou até que a Filosofia
não passava de uma "ginástica" do
pensamento, entendendo por isso o simples exercício e
adestramento de uma função — no caso, o pensamento em
vez dos músculos — sem outra
finalidade que essa.
Apesar, contudo, de boa parte da especulação
filosófica, particularmente em nossos dias,
parecer confirmar tal ponto de vista, ele certamente
não é verdadeiro. Há sem dúvida um
terreno comum onde a Filosofia, ou aquilo que se tem
entendido como tal, se confunde com a
literatura (no bom sentido, entenda-se bem) e não
objetiva realmente conclusão alguma,
destinando-se tão somente, como toda literatura, a par
do entretimento que proporciona, levar
aos leitores ou ouvintes, a partir destes centros
condensadores da consciência coletiva que são
os profissionais do pensamento, levar-lhes impressões
e estados de espírito, emoções e
estímulos, dúvidas e indagações. Mas esse terreno que
a Filosofia, ou pelo menos aquilo que
se tem entendido por "Filosofia",
compartilha com a literatura, não é toda Filosofia, nem
mesmo, de certo modo, a sua mais importante e
principal parte. E nem ao menos, a meu ver,
com todo interesse que possa representar, constitui
propriamente "Filosofia", e deveria antes
se confundir, na classificação, e às vezes até mesmo
na designação, com a mesma literatura
com que já apresenta tantas afinidades.
Mas conserve embora a Filosofia literária sua
qualificação e status, é necessário que a par
dela e com ela se desenvolva também uma Filosofia de
outro teor que dê resposta, e na
medida do possível, precisa, às questões que
efetivamente nela se propõem. A Filosofia pode
a rigor ser tratada literariamente, como pode sê-lo a
Ciência e o conhecimento em geral. Mas
que isso seja forma, e não fundo. Esse fundo é outra
coisa que, apesar de tudo, se percebe em
todo verdadeiro filósofo, por mais que se disfarce num
pensamento confuso, disperso, sem objetivo desde logo aparente e seguro. Que se
percebe sobretudo na Filosofia em conjunto
como maneira específica de tratar dos assuntos de que
se ocupa, por mais variados e díspares
que sejam. Com toda sua heterogeneidade, confusão e
hermetismo de tantos de seus textos
vazados em linguagem acessível unicamente a
iniciados—ou antes, por eles julgados
acessíveis, mais do que acessíveis de fato — com tudo
isso, a Filosofia encontra ressonância
tal que, se não fosse outro o motivo, já por si
bastaria para comprovar que nela se abrigam
questões que dizem muito de perto com interesses e
aspirações humanas que devem, por isso,
ser atendidos, e não frustrados pela ausência ou
desconhecimento de objetivo e rumo seguros
da parte daqueles que se ocupam do assunto.
Mas onde encontrar esse "objeto" último e
profundo da especulação filosófica para o qual
converge e onde se concentra a variegada problemática
de que a Filosofia vem através dos
séculos e em todos os lugares se ocupando; e de que
trata ? E muito importante determiná-lo,
porque isso pouparia esforços que tão freqüentemente
se perdem em indagações inúteis ou
mel propostas; e que, concentrados na direção de um
alvo legítimo e claramente definido,
reuniriam um máximo de probabilidades de atingirem
esse alvo, ou pelo menos de o
aproximarem. Existirá contudo esse objeto central e
legítimo de toda a especulação filosófica,
um denominador comum que embora disfarçado e mal
explícito, orienta mais ou menos
inconscientemente aquela especulação? Acredito que
sim, e a sua determinação constitui
tarefa necessária e preliminar da indagação
filosófica; e, certamente, mesmo que não chegue
logo a uma precisão rigorosa (se é que ela é
possível), será por certo de resultados altamente
fecundos.
O ponto de partida dessa determinação deve ser, para
nada perder em objetividade, a
consideração e exame do próprio conteúdo e
desenvolvimento daquilo que se tem por
pesquisa filosófica e do Conhecimento em geral. Mais
comumente a Filosofia é tida como
Uma complementação da Ciência e da elaboração
cognitiva em geral; como seu coroamento e
síntese. Esse conceito da Filosofia se encontra aliás
mais ou menos expressamente formulado
em boa parte das definições e explicações que dela se
dão, e partidas dos mais afastados e
mesmo antagônicos quadrantes. Até mesmo o séc. XVIII,
e talvez o seguinte, Filosofia ainda
se confundia com Ciência; e das filosofias
particulares (como por exemplo a "filosofia
química", que não é senão a nossa Química,
simplesmente) passava-se imperceptivelmente
para assuntos gerais que se enquadrariam melhor
naquilo que hoje entenderíamos mais
especificamente como "Filosofia".
Que a Filosofia é Conhecimento, e que de certa forma
se ocupa dos mesmos objetos que as
ciências em geral, não há dúvida. Mas tudo está nessa
restrição "de certa forma". isso porque
a Filosofia não é e não pode ser, logo veremos por
que, simplesmente prolongamento da
Ciência, uma "superciência" que a ela se
sobrepõe e que a completa. Não há lugar para esse
simples prolongamento. Ou melhor, qualquer legitimo
prolongamento da Ciência é e sempre
será, tudo indica, Ciência e não outra coisa. Isso se
pode concluir do fato que o
desenvolvimento da Ciência, quando se excluem
indevidas extrapolações, se faz sempre num
sentido único que é o da crescente generalização. E
não há nenhum ponto fixado, no passado,
ou previsível no futuro, nem mesmo fronteira difusa
naquele processo além do qual não
caberia mais falar em Ciência propriamente. A história
da Ciência nos mostra que sua marcha
e progresso vão uniformemente no sentido da elaboração
de conceitos, ou melhor
"conceituação" cada vez mais abstrata e
geral. Isto é, de sistemas conceptuais mais inclusivos,
que por isso mesmo cobrem e representam conjuntos mais
amplos da Realidade universal —
não no sentido de mais extensos simplesmente,
quantitativamente maiores, e sim mais
complexos e abrangentes, de feições mais
diferenciadas. Comparam-se a esse propósito os
dois setores do Conhecimento que se encontram
contemporaneamente nos extremos da linha
ascendente do progresso científico: de um lado as
Ciências sociais, de outro as físicas. No primeiro desses setores
encontramo-nos em face de um conhecimento empírico ainda
solidário, diretamente, com dados imediatos da
observação e experimentação. A conceituação
representativa desses dados que refletem os fatos
sociais é de insignificante generalidade; os
conceitos que a constituem se entrosam mal e
frouxadamente entre si, e não se englobam em
sistemas amplos capazes de formarem, por sua vez,
outros tantos conceitos de mais elevado
nível de abstração e generalidade.
Confronte-se essa situação com a das Ciências físicas
e de seus imponentes sistemas
conceptuais que cobrem e compreendem, representando-os
conceptualmente, extensos e
amplamente diversificados aspectos e feições da
Realidade universal. Considere-se em
particular o progresso recente dessas Ciências no
sentido de uma precipitada generalização,
que já hoje compreende (embora ainda falte um bom
caminho para a complementaçáo e
integração sistemática total do assunto) o conjunto
das Ciências fisico-quimicas que há
algumas décadas passadas ainda se confinavam em
esferas estanques e impenetráveis uma à
outra.
Observando-se esses fatos da marcha progressiva do
Conhecimento e da Ciência, o que se
verifica é a homogeneidade desse progresso. E da i se
pode concluir a respeito da
homogeneidade também do conhecimento científico, de
sua natureza, caráter e estrutura, que
são sempre uniformes e do mesmo padrão. Onde pois o
hiato ou transformação qualitativa
suficientemente acentuado para justificar, nesse
processo de desenvolvimento e
aprofundamento do Conhecimento, a eventualidade da
fixação de limites além dos quais já
não se trataria mais de "Ciência" e sim de
outra disciplina? Outra ordem de Conhecimento
que caberia à Filosofia ? Essa indagação sem resposta
plausível leva à conclusão de que a
Filosofia não é e não pode ser simples prolongamento
do conhecimento científico, nada mais
que um ponto de vista mais geral e amplo, mas
essencialmente de igual natureza, dos mesmos
objetos de que se ocupa a Ciência. E simplesmente
Ciência e não há por que incluí-la em
outra ordem de conhecimentos além da Ciência. A
Filosofia será outra coisa, ou então não
tem razão de existir. Aquilo de que se ocuparia um
simples prolongamento ou generalização
do conhecimento científico não merece outro nome que
"ciência" simplesmente.
Em outras palavras e mais sumariamente, é pelo objeto,
pela matéria ou assunto de que se
ocupa, que a Filosofia, para ter existência própria e
se legitimar, se há de distinguir. Não seria
simplesmente pela maneira, pelo método especifico de
tratar do mesmo objeto das Ciências,
que se justificaria uma ordem distinta de
conhecimentos que caberiam então à Filosofia. Se o
objeto da Filosofia é identicamente o mesmo que o das
Ciências, a saber, os fatos e feições do
Universo em geral, não haveria mister dela; e a
própria Ciência daria conta da tarefa. Isso
porque a elaboração do Conhecimento não segue caminhos
diversos, ou não deveria segui-los:
Um que seria o ordinário da Ciência, outro distinto
deste que se observa correntemente na
elaboração científica, e que por ser assim distinto
caberia à Filosofia. É certo que a elaboração
científica se realiza através de procedimentos vários,
que a rigor se poderiam considerar
métodos diferentes. Os tratados usuais da Lógica
elementar costumam considerar e enumerar
esses "métodos" — se é que merecem a
designação. Mas essas diferenças não são essenciais.
Trata-se antes de técnicas, digamos assim, de
investigação e exame dos fatos considerados.
Táticas ou estratégias, por assim dizer, de abordagem
desses fatos pela inquirição científica. O
essencial do processo de elaboração científica digna
desse nome e legitima é
fundamentalmente o mesmo em qualquer terreno. O que se
procura e o que se obtém com essa
elaboração não somente não apresenta disparidade
essencial alguma, como não se percebe ou
concebe onde e de que modo essa disparidade se poderia
insinuar. Não é com ela pois que se
logrará discernir e determinar uma ordem de
conhecimentos distintos dos da Ciência e
necessitando por isso de outra disciplina, que seria a
Filosofia. E assim pelo seu objeto, e somente por ele, que a Filosofia se há de
distinguir da Ciência, e
com isso se legitimar como disciplina à parte. Mas se
à Ciência cabe, como objeto, a
Realidade Universal, isto é, o Universo e seu conjunto
de ocorrências, feições, circunstâncias
que envolvem e também compreendem o Homem, o que
ficará de fora para eventual mente
constituir objeto próprio da Filosofia? Note-se que
estamos aqui empregando a expressão
"ciência" onde deveríamos com mais
propriedade dizer "Conhecimento". isso porque Ciência
não é senão Conhecimento sistematizado, e advertida e
intencionalmente elaborado, não se
distinguindo senão por essa sistematização em nível
elevado e elaboração intencional do
Conhecimento comum ou vulgar, aquele de que todo ser
humano é titular, por mais
rudimentar que seja seu nível de cultura. O
Conhecimento é essencialmente de uma só
natureza, e por mais elementar e grosseiro que seja,
tem fundamentalmente o mesmo caráter
do mais complexo e refinado conhecimento científico.
Não há, aliás, nenhuma fronteira
marcada, ou possível de marcar, nessa complexidade,
nem mesmo separação possível, pois o
conhecimento científico de hoje será o vulgar de
amanhã.
Assim sendo, as nossas considerações acima se aplicam
não especialmente ao conhecimento
científico, e sim ao Conhecimento em geral, ocupe ele
o plano hierárquico e o nível de
importância que ocupar. E, reformulando nessa base a
nossa questão, diríamos: qual o
possível objeto do Conhecimento que não seja objeto do
Conhecimento ? Pergunta
aparentemente sem sentido dentro dos cânones
lógico-lingüisticos ordinários mas que se
resolve simplesmente, e veremos que historicamente
também, no fato de que além do
conhecimento dos objetos ordinários do Conhecimento —
as feições e ocorrências do
Universo em que existimos e de que participamos—pode
haver, e efetivamente há ainda,
reflexivamente, um Conhecimento do próprio
Conhecimento.
Realmente é o que se verifica no desenvolvimento
histórico do pensamento humano logo que
o progresso do Conhecimento atinge certo nível. Isto
é, um retorno reflexivo da elaboração
cognitiva sobre si mesma, passando o próprio
Conhecimento a se fazer objeto do conhecer.
Fato esse suficientemente marcado para dar lugar a uma
ordem de cogitações bem
caracterizadas e distintas do Conhecimento ordinário.
E se bem que pensadores e elaboradores
do Conhecimento não se tenham desde logo dado
plenamente conta da diferenciação e
partição interior dos objetos de que se ocupavam (do
que aliás resultariam malentendidos e
confusões de largas conseqüências) a sua obra não
deixará de refletir a duplicidade do assunto
tratado e o novo rumo que tomava o pensamento e
elaboração do Conhecimento; isto é, a par
do Conhecimento, a do Conhecimento do Conhecimento. O
que cronologicamente coincide
no Mundo Antigo (e não terá sido por certo uma simples
coincidência) com a eclosão daquilo
que seria havido como "filosofia".
Veremos isso com suficiente clareza para uma primeira
abordagem do assunto, assim penso,
numa sumária recapitulação, a largos traços, das
linhas mestras e momentos culminantes e
decisivos do pensamento e elaboração do Conhecimento
nas sociedades que mais
contribuíram, até os nossos dias, para a evolução em
conjunto e conformação da cultura
moderna; e que vem a ser aquela que, brotada no seio
das civilizações do Mediterrâneo
oriental, se difundiria pela Europa ocidental e daí
para o mundo todo.
Mas em que consiste ou pode consistir esse
Conhecimento do Conhecimento cuja gênese e
vissitudes sofridas no curso de sua evolução se trata
para nós aqui de examinar? Ou, em
outras palavras, que vem a ser Conhecimento como
"objeto do Conhecimento" ? Em primeiro
lugar, está claro, a natureza do Conhecimento, seu
processamento. Dito de outro modo: o que
vem a ser o fato ou ato de "conhecer"; e
como se realiza esse fato, qual a sua seqüência—sua
gênese, seu desenvolvimento e seu desenlace; em que
vai dar. Isso é, como se apresenta e
configura na sua conclusão como corpo de conhecimentos
para o qual o processo afinal se dirige e em que se torna. São essas as
questões que se agrupam na disciplina ordinariamente
conhecida por Teoria do Conhecimento, epistemologia ou
mais genericamente: gnosiologia.
Disciplinas essas que constituem, segundo consenso
generalizado, capítulos da Filosofia. Até
aí, portanto, não haverá divergências apreciáveis que
começam daí por diante. Há os que
restringem a Filosofia a isso mesmo, e até menos, como
os logicalistas que fazem da própria
Teoria do Conhecimento, e pois da Filosofia que a ele
se reduziria, uma simples análise
lógico-crítica da linguagem ou simbolismo em que o
Conhecimento e a Ciência em particular
se exprimem. Essa concepção, contudo, é restrita a
reduzidos círculos. Em regra, pelo
contrário, a teoria do conhecimento, em si, ocupa
oficialmente um lugar secundário e
diríamos quase marginal da Filosofia que, a julgar
pelos assuntos nela tratados, ou pelo menos
sob sua responsabilidade, tem voz em qualquer terreno,
duplicando de certa forma com isso o
papel da Ciência cujo objeto não se distinguiria essencialmente
do seu. Filosofia e Ciência,
distintas embora quanto à perspectiva em que
respectivamente se colocam, e ao método, ou
antes "estilo" que adotam, se ocupariam uma
e outra da mesma Realidade universal. Já
lembramos acima essa universalidade da Filosofia, bem
como a confusão reinante no seu
ponto de partida entre os objetos respectivos do
Conhecimento (que seria em particular a
Ciência) e o Conhecimento do Conhecimento, ou
Filosofia. Confusão essa que se prolongará
sob muitos aspectos, embora
progressivamente se atenuando, até os dias de hoje.
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