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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Filosofia - Aula 1



Excertos de O que é filosofia- Caio Prado Jr.

Não precisamos buscar na infinidade de conceitos de "Filosofia" — talvez um para cada
autor de certa expressão, e que à vagueza das formulações acrescentam às vezes até posições
contraditórias —não precisamos procurar aí a incerteza e imprecisão que reinam e, sobretudo
em nossos dias, no que concerne o objeto da especulação filosófica. Muito mais ilustrativa é a
consulta aos, textos filosóficos ou qualquer exposição ou análise do desenvolvimento
histórico do assunto. De tudo se trata, pode-se dizer, ou se tem tratado na "Filosofia", e até os
mesmos assuntos, ou aparentemente os mesmos, são considerados em perspectivas de tal
modo apartadas uma das outras que não se combinam e entrosam entre si, tornando-se
impossível contrastá-las. Para alguns, essa situação é não apenas normal, mas plenamente
justificável.
A Filosofia seria isso mesmo: uma especulação infinita e desregrada em torno de qualquer
assunto ou questão, ao sabor de cada autor, de suas preferências e mesmo de seus humores.
Há mesmo quem afirme não caber à Filosofia "resolver", e sim unicamente sugerir questões e
propor problemas, fazer perguntas cujas respostas não têm maior interesse, e com o fim
unicamente de estimular a reflexão, aguçar a curiosidade. E já se afirmou até que a Filosofia
não passava de uma "ginástica" do pensamento, entendendo por isso o simples exercício e
adestramento de uma função — no caso, o pensamento em vez dos músculos — sem outra
finalidade que essa.
Apesar, contudo, de boa parte da especulação filosófica, particularmente em nossos dias,
parecer confirmar tal ponto de vista, ele certamente não é verdadeiro. Há sem dúvida um
terreno comum onde a Filosofia, ou aquilo que se tem entendido como tal, se confunde com a
literatura (no bom sentido, entenda-se bem) e não objetiva realmente conclusão alguma,
destinando-se tão somente, como toda literatura, a par do entretimento que proporciona, levar
aos leitores ou ouvintes, a partir destes centros condensadores da consciência coletiva que são
os profissionais do pensamento, levar-lhes impressões e estados de espírito, emoções e
estímulos, dúvidas e indagações. Mas esse terreno que a Filosofia, ou pelo menos aquilo que
se tem entendido por "Filosofia", compartilha com a literatura, não é toda Filosofia, nem
mesmo, de certo modo, a sua mais importante e principal parte. E nem ao menos, a meu ver,
com todo interesse que possa representar, constitui propriamente "Filosofia", e deveria antes
se confundir, na classificação, e às vezes até mesmo na designação, com a mesma literatura
com que já apresenta tantas afinidades.
Mas conserve embora a Filosofia literária sua qualificação e status, é necessário que a par
dela e com ela se desenvolva também uma Filosofia de outro teor que dê resposta, e na
medida do possível, precisa, às questões que efetivamente nela se propõem. A Filosofia pode
a rigor ser tratada literariamente, como pode sê-lo a Ciência e o conhecimento em geral. Mas
que isso seja forma, e não fundo. Esse fundo é outra coisa que, apesar de tudo, se percebe em
todo verdadeiro filósofo, por mais que se disfarce num pensamento confuso, disperso, sem objetivo desde logo aparente e seguro. Que se percebe sobretudo na Filosofia em conjunto
como maneira específica de tratar dos assuntos de que se ocupa, por mais variados e díspares
que sejam. Com toda sua heterogeneidade, confusão e hermetismo de tantos de seus textos
vazados em linguagem acessível unicamente a iniciados—ou antes, por eles julgados
acessíveis, mais do que acessíveis de fato — com tudo isso, a Filosofia encontra ressonância
tal que, se não fosse outro o motivo, já por si bastaria para comprovar que nela se abrigam
questões que dizem muito de perto com interesses e aspirações humanas que devem, por isso,
ser atendidos, e não frustrados pela ausência ou desconhecimento de objetivo e rumo seguros
da parte daqueles que se ocupam do assunto.
Mas onde encontrar esse "objeto" último e profundo da especulação filosófica para o qual
converge e onde se concentra a variegada problemática de que a Filosofia vem através dos
séculos e em todos os lugares se ocupando; e de que trata ? E muito importante determiná-lo,
porque isso pouparia esforços que tão freqüentemente se perdem em indagações inúteis ou
mel propostas; e que, concentrados na direção de um alvo legítimo e claramente definido,
reuniriam um máximo de probabilidades de atingirem esse alvo, ou pelo menos de o
aproximarem. Existirá contudo esse objeto central e legítimo de toda a especulação filosófica,
um denominador comum que embora disfarçado e mal explícito, orienta mais ou menos
inconscientemente aquela especulação? Acredito que sim, e a sua determinação constitui
tarefa necessária e preliminar da indagação filosófica; e, certamente, mesmo que não chegue
logo a uma precisão rigorosa (se é que ela é possível), será por certo de resultados altamente
fecundos.
O ponto de partida dessa determinação deve ser, para nada perder em objetividade, a
consideração e exame do próprio conteúdo e desenvolvimento daquilo que se tem por
pesquisa filosófica e do Conhecimento em geral. Mais comumente a Filosofia é tida como
Uma complementação da Ciência e da elaboração cognitiva em geral; como seu coroamento e
síntese. Esse conceito da Filosofia se encontra aliás mais ou menos expressamente formulado
em boa parte das definições e explicações que dela se dão, e partidas dos mais afastados e
mesmo antagônicos quadrantes. Até mesmo o séc. XVIII, e talvez o seguinte, Filosofia ainda
se confundia com Ciência; e das filosofias particulares (como por exemplo a "filosofia
química", que não é senão a nossa Química, simplesmente) passava-se imperceptivelmente
para assuntos gerais que se enquadrariam melhor naquilo que hoje entenderíamos mais
especificamente como "Filosofia".
Que a Filosofia é Conhecimento, e que de certa forma se ocupa dos mesmos objetos que as
ciências em geral, não há dúvida. Mas tudo está nessa restrição "de certa forma". isso porque
a Filosofia não é e não pode ser, logo veremos por que, simplesmente prolongamento da
Ciência, uma "superciência" que a ela se sobrepõe e que a completa. Não há lugar para esse
simples prolongamento. Ou melhor, qualquer legitimo prolongamento da Ciência é e sempre
será, tudo indica, Ciência e não outra coisa. Isso se pode concluir do fato que o
desenvolvimento da Ciência, quando se excluem indevidas extrapolações, se faz sempre num
sentido único que é o da crescente generalização. E não há nenhum ponto fixado, no passado,
ou previsível no futuro, nem mesmo fronteira difusa naquele processo além do qual não
caberia mais falar em Ciência propriamente. A história da Ciência nos mostra que sua marcha
e progresso vão uniformemente no sentido da elaboração de conceitos, ou melhor
"conceituação" cada vez mais abstrata e geral. Isto é, de sistemas conceptuais mais inclusivos,
que por isso mesmo cobrem e representam conjuntos mais amplos da Realidade universal —
não no sentido de mais extensos simplesmente, quantitativamente maiores, e sim mais
complexos e abrangentes, de feições mais diferenciadas. Comparam-se a esse propósito os
dois setores do Conhecimento que se encontram contemporaneamente nos extremos da linha
ascendente do progresso científico: de um lado as Ciências sociais, de outro as físicas. No primeiro desses setores encontramo-nos em face de um conhecimento empírico ainda
solidário, diretamente, com dados imediatos da observação e experimentação. A conceituação
representativa desses dados que refletem os fatos sociais é de insignificante generalidade; os
conceitos que a constituem se entrosam mal e frouxadamente entre si, e não se englobam em
sistemas amplos capazes de formarem, por sua vez, outros tantos conceitos de mais elevado
nível de abstração e generalidade.
Confronte-se essa situação com a das Ciências físicas e de seus imponentes sistemas
conceptuais que cobrem e compreendem, representando-os conceptualmente, extensos e
amplamente diversificados aspectos e feições da Realidade universal. Considere-se em
particular o progresso recente dessas Ciências no sentido de uma precipitada generalização,
que já hoje compreende (embora ainda falte um bom caminho para a complementaçáo e
integração sistemática total do assunto) o conjunto das Ciências fisico-quimicas que há
algumas décadas passadas ainda se confinavam em esferas estanques e impenetráveis uma à
outra.
Observando-se esses fatos da marcha progressiva do Conhecimento e da Ciência, o que se
verifica é a homogeneidade desse progresso. E da i se pode concluir a respeito da
homogeneidade também do conhecimento científico, de sua natureza, caráter e estrutura, que
são sempre uniformes e do mesmo padrão. Onde pois o hiato ou transformação qualitativa
suficientemente acentuado para justificar, nesse processo de desenvolvimento e
aprofundamento do Conhecimento, a eventualidade da fixação de limites além dos quais já
não se trataria mais de "Ciência" e sim de outra disciplina? Outra ordem de Conhecimento
que caberia à Filosofia ? Essa indagação sem resposta plausível leva à conclusão de que a
Filosofia não é e não pode ser simples prolongamento do conhecimento científico, nada mais
que um ponto de vista mais geral e amplo, mas essencialmente de igual natureza, dos mesmos
objetos de que se ocupa a Ciência. E simplesmente Ciência e não há por que incluí-la em
outra ordem de conhecimentos além da Ciência. A Filosofia será outra coisa, ou então não
tem razão de existir. Aquilo de que se ocuparia um simples prolongamento ou generalização
do conhecimento científico não merece outro nome que "ciência" simplesmente.
Em outras palavras e mais sumariamente, é pelo objeto, pela matéria ou assunto de que se
ocupa, que a Filosofia, para ter existência própria e se legitimar, se há de distinguir. Não seria
simplesmente pela maneira, pelo método especifico de tratar do mesmo objeto das Ciências,
que se justificaria uma ordem distinta de conhecimentos que caberiam então à Filosofia. Se o
objeto da Filosofia é identicamente o mesmo que o das Ciências, a saber, os fatos e feições do
Universo em geral, não haveria mister dela; e a própria Ciência daria conta da tarefa. Isso
porque a elaboração do Conhecimento não segue caminhos diversos, ou não deveria segui-los:
Um que seria o ordinário da Ciência, outro distinto deste que se observa correntemente na
elaboração científica, e que por ser assim distinto caberia à Filosofia. É certo que a elaboração
científica se realiza através de procedimentos vários, que a rigor se poderiam considerar
métodos diferentes. Os tratados usuais da Lógica elementar costumam considerar e enumerar
esses "métodos" — se é que merecem a designação. Mas essas diferenças não são essenciais.
Trata-se antes de técnicas, digamos assim, de investigação e exame dos fatos considerados.
Táticas ou estratégias, por assim dizer, de abordagem desses fatos pela inquirição científica. O
essencial do processo de elaboração científica digna desse nome e legitima é
fundamentalmente o mesmo em qualquer terreno. O que se procura e o que se obtém com essa
elaboração não somente não apresenta disparidade essencial alguma, como não se percebe ou
concebe onde e de que modo essa disparidade se poderia insinuar. Não é com ela pois que se
logrará discernir e determinar uma ordem de conhecimentos distintos dos da Ciência e
necessitando por isso de outra disciplina, que seria a Filosofia. E assim pelo seu objeto, e somente por ele, que a Filosofia se há de distinguir da Ciência, e
com isso se legitimar como disciplina à parte. Mas se à Ciência cabe, como objeto, a
Realidade Universal, isto é, o Universo e seu conjunto de ocorrências, feições, circunstâncias
que envolvem e também compreendem o Homem, o que ficará de fora para eventual mente
constituir objeto próprio da Filosofia? Note-se que estamos aqui empregando a expressão
"ciência" onde deveríamos com mais propriedade dizer "Conhecimento". isso porque Ciência
não é senão Conhecimento sistematizado, e advertida e intencionalmente elaborado, não se
distinguindo senão por essa sistematização em nível elevado e elaboração intencional do
Conhecimento comum ou vulgar, aquele de que todo ser humano é titular, por mais
rudimentar que seja seu nível de cultura. O Conhecimento é essencialmente de uma só
natureza, e por mais elementar e grosseiro que seja, tem fundamentalmente o mesmo caráter
do mais complexo e refinado conhecimento científico. Não há, aliás, nenhuma fronteira
marcada, ou possível de marcar, nessa complexidade, nem mesmo separação possível, pois o
conhecimento científico de hoje será o vulgar de amanhã.
Assim sendo, as nossas considerações acima se aplicam não especialmente ao conhecimento
científico, e sim ao Conhecimento em geral, ocupe ele o plano hierárquico e o nível de
importância que ocupar. E, reformulando nessa base a nossa questão, diríamos: qual o
possível objeto do Conhecimento que não seja objeto do Conhecimento ? Pergunta
aparentemente sem sentido dentro dos cânones lógico-lingüisticos ordinários mas que se
resolve simplesmente, e veremos que historicamente também, no fato de que além do
conhecimento dos objetos ordinários do Conhecimento — as feições e ocorrências do
Universo em que existimos e de que participamos—pode haver, e efetivamente há ainda,
reflexivamente, um Conhecimento do próprio Conhecimento.
Realmente é o que se verifica no desenvolvimento histórico do pensamento humano logo que
o progresso do Conhecimento atinge certo nível. Isto é, um retorno reflexivo da elaboração
cognitiva sobre si mesma, passando o próprio Conhecimento a se fazer objeto do conhecer.
Fato esse suficientemente marcado para dar lugar a uma ordem de cogitações bem
caracterizadas e distintas do Conhecimento ordinário. E se bem que pensadores e elaboradores
do Conhecimento não se tenham desde logo dado plenamente conta da diferenciação e
partição interior dos objetos de que se ocupavam (do que aliás resultariam malentendidos e
confusões de largas conseqüências) a sua obra não deixará de refletir a duplicidade do assunto
tratado e o novo rumo que tomava o pensamento e elaboração do Conhecimento; isto é, a par
do Conhecimento, a do Conhecimento do Conhecimento. O que cronologicamente coincide
no Mundo Antigo (e não terá sido por certo uma simples coincidência) com a eclosão daquilo
que seria havido como "filosofia".
Veremos isso com suficiente clareza para uma primeira abordagem do assunto, assim penso,
numa sumária recapitulação, a largos traços, das linhas mestras e momentos culminantes e
decisivos do pensamento e elaboração do Conhecimento nas sociedades que mais
contribuíram, até os nossos dias, para a evolução em conjunto e conformação da cultura
moderna; e que vem a ser aquela que, brotada no seio das civilizações do Mediterrâneo
oriental, se difundiria pela Europa ocidental e daí para o mundo todo.
Mas em que consiste ou pode consistir esse Conhecimento do Conhecimento cuja gênese e
vissitudes sofridas no curso de sua evolução se trata para nós aqui de examinar? Ou, em
outras palavras, que vem a ser Conhecimento como "objeto do Conhecimento" ? Em primeiro
lugar, está claro, a natureza do Conhecimento, seu processamento. Dito de outro modo: o que
vem a ser o fato ou ato de "conhecer"; e como se realiza esse fato, qual a sua seqüência—sua
gênese, seu desenvolvimento e seu desenlace; em que vai dar. Isso é, como se apresenta e
configura na sua conclusão como corpo de conhecimentos para o qual o processo afinal se dirige e em que se torna. São essas as questões que se agrupam na disciplina ordinariamente
conhecida por Teoria do Conhecimento, epistemologia ou mais genericamente: gnosiologia.
Disciplinas essas que constituem, segundo consenso generalizado, capítulos da Filosofia. Até
aí, portanto, não haverá divergências apreciáveis que começam daí por diante. Há os que
restringem a Filosofia a isso mesmo, e até menos, como os logicalistas que fazem da própria
Teoria do Conhecimento, e pois da Filosofia que a ele se reduziria, uma simples análise
lógico-crítica da linguagem ou simbolismo em que o Conhecimento e a Ciência em particular
se exprimem. Essa concepção, contudo, é restrita a reduzidos círculos. Em regra, pelo
contrário, a teoria do conhecimento, em si, ocupa oficialmente um lugar secundário e
diríamos quase marginal da Filosofia que, a julgar pelos assuntos nela tratados, ou pelo menos
sob sua responsabilidade, tem voz em qualquer terreno, duplicando de certa forma com isso o
papel da Ciência cujo objeto não se distinguiria essencialmente do seu. Filosofia e Ciência,
distintas embora quanto à perspectiva em que respectivamente se colocam, e ao método, ou
antes "estilo" que adotam, se ocupariam uma e outra da mesma Realidade universal. Já
lembramos acima essa universalidade da Filosofia, bem como a confusão reinante no seu
ponto de partida entre os objetos respectivos do Conhecimento (que seria em particular a
Ciência) e o Conhecimento do Conhecimento, ou Filosofia. Confusão essa que se prolongará
sob muitos aspectos, embora progressivamente se atenuando, até os dias de hoje.

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