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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Filosofia - Aula 2



Aula 2
Excertos do Discurso do Método- Descartes


PRIMEIRA PARTE
INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom senso,
visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido dele que mesmo os mais
difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não costumam desejar possuí-lo
mais do que já possuem. E é improvável que todos se enganem a esse respeito;
mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de forma correta e discernir
entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é denominado bom senso ou
razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de que a diversidade de
nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns mais racionais que
outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos por caminhos diferentes e
não considerarmos as mesmas coisas. Pois é insuficiente ter o espírito bom, o
mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são capazes dos maiores
vícios, como também das maiores virtudes, e os que só andam muito devagar
podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo caminho reto, do que
aqueles que correm e dele se afastam.
Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em nada mais perfeito
do que os dos outros; com freqüência desejei ter o pensamento tão rápido, ou a
imaginação tão clara e diferente, ou a memória tão abrangente ou tão pronta,
quanto alguns outros. E desconheço quaisquer outras qualidades, afora as que
servem para o aperfeiçoamento do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso,
posto que é a única coisa que nos torna homens e nos diferencia dos animais,
acredito que existe totalmente em cada um, acompanhando nisso a opinião geral
dos filósofos, que afirmam não existir mais nem menos senão entre os acidentes,
e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos de uma mesma espécie.
Mas não recearei dizer que julgo ter tido muita felicidade de me haver
encontrado, a partir da juventude, em determinados caminhos, que me levaram a
considerações e máximas, das quais formei um método, pelo qual me parece que
eu consiga aumentar de forma gradativa meu conhecimento, e de elevá-lo, pouco
a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de meu espírito e a breve
duração de minha vida lhe permitam alcançar. Pois já colhi dele tais frutos que,
apesar de no juízo que faço de mim próprio eu procure inclinar-me mais para o
lado da desconfiança do que para o da presunção, e que, observando com um
olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não
exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil, não deixo de lograr
extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da
verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, se entre as ocupações
dos homens puramente homens existe alguma que seja solidamente boa e
importante, atrevo-me a acreditar que é aquela que escolhi.
Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um
pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes. Sei como estamos
sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser
suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor. Mas apreciaria
muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que segui, e representar nele a
minha vida como num quadro, para que cada um possa julgá -la e que, informado
pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito dela, seja este uma nova
forma de me instruir, que acrescentarei àquelas de que tenho o hábito de me
utilizar.
Portanto, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada qual deve
seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo me
esforcei por conduzir a minha. Os que se aventuram a fornecer normas devem
considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem as dão; e, se falham na menor
coisa, são por isso censuráveis. Mas, não propondo este escrito senão como uma
história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na qual, entre alguns exemplos
que se podem imitar, encontrar-se-ão talvez também muitos outros que se terá
razão de não seguir, espero que ele será útil a alguns, sem ser danoso a ninguém,
e que todos me serão gratos por minha franqueza.
Fui instruído nas letras desde a infância, e por me haver convencido de que,
por intermédio delas, poder-se-ia adquirir um conhecimento claro e seguro de
tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo de aprendê-las. Porém,
assim que terminei esses estudos, ao cabo do qual costuma-se ser recebido na
classe dos eruditos, mudei totalmente de opinião. Pois me encontrava
embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia não haver conseguido
outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter descoberto cada vez mais
a minha ignorância. E, contudo, estudara numa das mais célebres escolas da
Europa, onde imaginava que devia haver homens sábios, se é que havia em
algum lugar da Terra. Aprendera aí tudo o que os outros aprendiam, e mesmo
não havendo me contentado com ciências que nos ensinavam, lera todos os
livros que tratam daquelas que são reputadas as mais curiosas e as mais raras,
que vieram a cair em minhas mãos. Além disso, eu conhecia os juízos que os
outros faziam de mim; e não via de modo algum que me julgassem inferior a
meus colegas, apesar de entre eles haver alguns já destinados a ocupar os lugares
de nossos mestres. E, enfim, o nosso século parecia-me tão luminoso e tão fértil
em bons espíritos como qualquer um dos anteriores, O que me levava a tomar a
liberdade de julgar por mim todos os outros e de pensar que não havia doutrina
no mundo que fosse tal como antes me haviam feito presumir.
Apesar disso, não deixava de apreciar os exercícios com os quais se
ocupam nas escolas. Sabia que as línguas que nelas se aprendem são necessárias
ao entendimento dos livros antigos; que a gentileza das fábulas estimula o
espírito; que as realizações notáveis das histórias o fazem crescer, e que, sendo
lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a leitura de todos os bons
livros é igual a uma conversação com as pessoas mais qualificadas dos séculos
passados, que foram seus autores, e até uma conversação premeditada, na qual
eles nos revelam apenas seus melhores pensamentos; que a eloqüência possui
forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem delicadezas e ternuras deveras
encantadoras; que as matemáticas têm invenções bastante sutis, e que podem
servir muito, tanto para satisfazer os curiosos quanto para facilitar todas as artes
e reduzir o trabalho dos homens; que os escritos que tratam dos costumes contêm
muitos ensinamentos e muitos estímulos à virtude que são muito úteis; que a
teologia ensina a ganhar o céu; que a filosofia ensina a falar com coerência de
todas as coisas e de se fazer admirar pelos que possuem menos erudição; que a
jurisprudência, a medicina e as outras ciências proporcionam honras e riquezas
àqueles que as cultivam; e, enfim, que é bom havê-las examinado a todas, até
mesmo as mais eivadas de superstição e as mais falsas, a fim de conhecer-lhes o
exato valor e evitar ser por elas enganado.
Mas eu julgava já ter gasto bastante tempo com as línguas, e também com a
leitura dos livros antigos, com suas histórias e suas fábulas. Pois quase a mesma
coisa que conversar com os homens de outros séculos é viajar. E bom saber
alguma coisa dos hábitos de diferentes povos, para que julguemos os nossos
mais justamente e não pensemos que tudo quanto é diferente dos nossos
costumes é ridículo e contrário à razão, como soem fazer os que nada viram.
Contudo, quando gastamos excessivo tempo em viajar, acabamos tornando-nos
estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos excessivamente curiosos
das coisas que se realizavam nos séculos passados, ficamos geralmente muito
ignorantes das que se realizam no presente. Ademais, as fábulas fazem imaginar
como possíveis muitos acontecimentos que não o são, e até mesmo as histórias
mais verossímeis, se não mudam nem alteram o valor das coisas para torná-las
mais dignas de serem lidas, ao menos deixam de apresentar quase sempre as circunstâncias
mais baixas e menos insignes, de onde resulta que o resto não parece
tal qual é, e que aqueles que norteiam seus hábitos pelos exemplos que deles
tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos heróis de nossos romances e a
conceber propósitos que superam suas forças.
Eu estimava muito a eloquência e estava apaixo nado pela poesia; mas
acreditava que uma e outra fossem dons do espírito, mais do que frutos do
estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais ativo e que melhor ordenam seus
pensamentos, com o intuito de torná-los claros e inteligíveis, sempre podem
convencer melhor os outros daquilo que propõem, mesmo que falem somente o
baixo bretão e nunca hajam aprendido retórica. E aqueles cujas invenções são
mais agradáveis e que as sabem apresentar com o máximo de floreio e suavidade
não deixariam de ser os melhores poetas, mesmo que a arte poética lhes fosse
desconhecida.
Deleitava-me principalmente com as matemáticas, devido à certeza e à
evidência de suas razões; mas ainda não percebia sua verdadeira aplicação, e,
julgando que só serviam às artes mecânicas, espantava-me de que, sendo seus
fundamentos tão seguros e sólidos, não se houvesse construído sobre eles nada
de mais elevado. Da mesma forma que, ao contrário, eu comparava os escritos
dos antigos pagãos que tratam de hábitos a magníficos palácios erigidos apenas
sobre a areia e a lama. Elevam muito alto as virtudes e as apresentam como as
mais dignas de estima entre todas as coisas que existem no mundo; mas não
ensinam bastante a conhecê-las, e freqüentemente o que chamam com um nome
tão belo não passa de uma insensibilidade, ou de um orgulho, ou de um
desespero, ou de um parricídio.
Eu venerava a nossa teologia e pretendia, como qualquer um, ganhar o céu;
porém, tendo aprendido, como algo muito certo, que o seu caminho não está
menos franqueado aos mais ignorantes do que aos mais sábios e que as verdades
reveladas que para lá conduzem estão além de nossa inteligência, não me
atreveria a submetê-las à debilidade de meus raciocínios, e pensava que, para
empreender sua análise e obter êxito, era preciso receber alguma extraordinária
assistência do céu e ser mais do que homem.
Nada direi a respeito da filosofia, exceto que, vendo que foi cultivada pelos
mais elevados espíritos que viveram desde muitos séculos e que, apesar disso,
nela ainda não se encontra uma única coisa a respeito da qual não haja discussão,
e consequentemente que não seja duvidosa, eu não alimentava esperança alguma
de acertar mais que os outros; e que, ao considerar quantas opiniões distintas,
defendidas por homens eruditos, podem existir acerca de um mesmo assunto,
sem que possa haver mais de uma que seja verdadeira, achava quase como falso
tudo quanto era apenas provável.
A respeito das outras ciências, por tomarem seus princípios da filosofia,
acreditava que nada de sólido se podia construir sobre alicerces tão pouco
firmes. E nem a honra, nem o lucro que elas prometem, eram suficientes para me
exortar a aprendê-las; pois graças a Deus não me sentia de maneira alguma numa
condição que me obrigasse a converter a ciência num ofício, para o alívio de
minha fortuna; e se bem que não desprezasse a glória como um cínico, fazia,
contudo, muito pouca questão daquela que eu só podia esperar obter com falsos
títulos. Por fim, no que diz respeito às más doutrinas, julgava já conhecer
suficientemente o que valiam, para não mais correr o risco de ser enganado, nem
pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições de um astrólogo, nem
pelas imposturas de um mágico, nem pelas artimanhas ou arrogâncias dos que
manifestam saber mais do que realmente sabem.
Aqui está por que, apenas a idade me possibilitou sair da submissão aos
meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das letras. E, decidindo-me a
não mais procurar outra ciência além daquela que poderia encontrar em mim
mesmo, ou então no grande livro do mundo, aproveitei o resto de minha
juventude para viajar, para ver cortes e exércitos, para freqüentar pessoas de
diferentes humores e condições, para fazer variadas experiências, para pôr a mim
mesmo à prova nos reencontros que o destino me propunha e, por toda parte,
para refletir a respeito das coisas que se me apresentavam, a fim de que eu
pudesse tirar algum proveito delas. Pois acreditava poder encontrar muito mais
verdade nos raciocínios que cada um forma no que se refere aos negócios que
lhe interessam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve penalizá-lo logo em seguida,
do que naqueles que um homem de letras forma em seu gabinete a respeito de
especulações que não produzem efeito algum e que não lhe acarretam outra
conseqüência salvo, talvez, a de lhe proporcionarem tanto mais vaidade quanto
mais afastadas do senso comum, por causa do outro tanto de espírito e artimanha
que necessitou empregar no esforço de torná-las prováveis. E eu sempre tive um
enorme desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro do falso, para ver
claramente minhas ações e caminhar com segurança nesta vida.
A verdade é que, ao limitar-me a observar os costumes dos outros homens,
pouco encontrava que me satisfizesse, pois percebia neles quase tanta
diversidade como a que notara anteriormente entre as opiniões dos filósofos. De
forma que o maior proveito que daí tirei foi que, vendo uma quantid ade de coisas
que, apesar de nos parecerem muito extravagantes e ridículas, são comumente
recebidas e aprovadas por outros grandes povos, aprendi a não acreditar com
demasiada convicção em nada do que me havia sido inculcado só pelo exemplo e
pelo hábito; e, dessa maneira, pouco a pouco, livrei-me de muitos enganos que
ofuscam a nossa razão e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. Porém, após
dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro do mundo, e em procurar
adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de estudar também a mim
próprio e de empregar todas as forças de meu espírito na escolha dos caminhos
que iria seguir. Isso, a meu ver,, trouxe-me muito melhor resultado do que se
nunca tivesse me distanciado de meu país e de meus livros.

QUARTA PARTE
NÃO ESTOU SEGURO se deva falar-vos a respeito das primeiras
meditações que aí realizei; já que por serem tão metafísicas e tão incomuns, é
possível que não serão apreciadas por todos. Contudo, para que seja possível
julgar se os fundamentos que escolhi são suficientemente firmes, vejo-me, de
alguma forma, obrigado a falar-vos delas. Havia bastante tempo observara que,
no que concerne aos costumes, é às vezes preciso seguir opiniões, que sabemos
serem muito duvidosas, como se não admitissem dúvidas, conforme já foi dito
acima; porém, por desejar então dedicar-me apenas a pesquisa da verdade, achei
que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar como totalmente falso tudo
aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o intuito de ver se, depois
disso, não restaria algo em meu crédito que fosse completamente incontestável.
Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos enganam, quis presumir que
não existia nada que fosse tal como eles nos fazem imaginar. E, por existirem
homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se refere às mais simples
noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei como falsas, achando que
estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas as razões que eu tomara
até então por demonstrações. E, enfim, considerando que quaisquer pensamentos
que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem também ocorrer
enquanto dormimos, sem que exista nenhum, nesse caso, que seja correto, decidi
fazer de conta que todas as coisas que até então haviam entrado no meu espírito
não eram mais corretas do que as ilusões de meus sonhos. Porém, logo em
seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria pensar que tudo era falso,
fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, ao notar que esta
verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida e tão correta que as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de lhe causar abalo,
julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o primeiro princípio da
filosofia que eu procurava.
Mais tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e vendo que podia
presumir que não possuía corpo algum e que não havia mundo algum, ou lugar
onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor que não existia; e que, ao
contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras
coisas, resultava com bastante evidência e certeza que eu existia; ao passo que,
se somente tivesse parado de pensar, apesar de que tudo o mais que alguma vez
imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma de acreditar que eu tivesse
existido; compreendi, então, que eu era uma substância cuja essência ou natureza
consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de lugar algum, nem
depende de qualquer coisa material. De maneira que esse eu, ou seja, a alma, por
causa da qual sou o que sou, é co mpletamente distinta do corpo e, também, que é
mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este nada fosse, ela não deixaria
de ser tudo o que é.
Depois disso, considerei o que é necessário a uma proposição para ser
verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que eu sabia ser exatamente
assim, pensei que devia saber também em que consiste essa certeza. E, ao
perceber que nada há no eu penso, logo existo, que me dê a certeza de que digo a
verdade, salvo que vejo muito claramente que, para pensar, é preciso existir,
concluí que poderia tomar por regra geral que as coisas que concebemos muito
clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo somente alguma dificuldade
em notar bem quais são as que concebemos distintamente.
Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu duvidava, e que, por
conseguinte, meu ser não era totalmente perfeito, pois via claramente que o
conhecer é perfeição maior do que o duvidar, decidi procurar de onde aprendera
a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e descobri, com evidência, que
devia ser de alguma natureza que fosse realmente mais perfeita. No que se refere
aos pensamentos que eu formulava sobre muitas outras coisas fora de mim,
como a respeito do céu, da Terra, da luz, do calor e de mil outras, não me era tão
difícil saber de onde vinham, porque, não notando neles nada que me parecesse
torná-los superiores a mim, podia julgar que, se fossem verdadeiros, seriam
dependências de minha natureza, na medida em que esta possuía alguma
perfeição; e se não o eram, que eu os formulava a partir do nada, ou seja, que
existiam em mim pelo que eu possuía de falho. Mas não podia ocorrer o mesmo
com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu; pois fazê-la sair do nada era
evidentemente impossível; e, visto que não é menos repulsiva a idéia de que o
mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência do menos perfeito do
que a de admitir que do nada se origina alguma coisa, eu não podia tirá-la
tampouco de mim próprio. De maneira que restava somente que tivesse sido
colocada em mim por uma natureza que fosse de fato perfeita do que a minha, e
que possuísse todas as perfeições de que eu poderia ter alguma idéia, ou seja,
para dizê-lo numa única palavra, que fosse Deus. A isso acrescentei que,
admitido que conhecia algumas perfeições que eu não tinha, não era o único ser
que existia (usarei aqui livremente, se vos aprouver, alguns termos da Escola);
mas que devia necessariamente haver algum outro mais perfeito, do qual eu
dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que possuía. Pois, se eu fosse
sozinho e independente de qualquer outro, de maneira que tivesse recebido, de
mim próprio, todo esse pouco mediante o qual participava do Ser perfeito,
poderia receber de mim, pelo mesmo motivo, todo o restante que sabia faltar-me,
e ser assim eu próprio infinito, eterno, imutável, onisciente, todo-poderoso, e enfim ter todas as perfeições que podia perceber existirem em Deus. Pois, de
acordo com os raciocínios que acabo de fazer, para conhecer a natureza de Deus,
tanto quanto a minha o era capaz, era suficiente considerar, a respeito de todas as
coisas de que encontrava em mim qualquer idéia, se era ou não perfeição possuí-las,
e tinha certeza de que nenhuma das que eram marcadas por alguma
imperfeição existia nele, mas que todas as outras existiam. Dessa forma, eu
notava que a dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas parecidas não podiam
existir nele, porque eu mesmo apreciaria muito ser desprovido delas. Ademais,
eu tinha idéias acerca de muitas coisas sensíveis e corporais; pois, apesar de
presumir que estava sonhando e que tudo quanto via e imaginava era falso, não
podia negar, não obstante, que as idéias a respeito não existissem
verdadeiramente em meu pensamento; porém, por já haver reconhecido em mim
com bastante clareza que a natureza inteligente é distinta da corporal,
considerando que toda a composição testemunha dependência, e que a
dependência é evidentemente uma falha, julguei a partir disso que não podia ser
uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas naturezas, e que, em
conseqüência, Ele não o era, mas que, se existiam alguns corpos no mundo, ou
então algumas inteligências, ou outras naturezas, que não fossem totalmente
perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus, de tal maneira que não
pudessem subsistir sem Ele por um único instante.
Em seguida a isso, eu quis procurar outras verdades, e tendo-me
estabelecido o objeto dos geômetras, que eu concebia como um corpo contínuo,
ou um espaço infinitamente extenso em comprimento, largura e altura ou
profundidade, divisível em diversas partes que podiam ter diferentes figuras e
grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as maneiras, pois os geômetras
conjeturam tudo isto em seu objeto, examinava algumas de suas demonstrações
mais simples. E, ao perceber que essa grande certeza, que todos lhes atribuem, se
alicerça somente no fato de serem concebidas com evidência, segundo a regra
que há pouco manifestei, notei também que nada existia nelas que me garantisse
a existência de seu objeto. Pois, por exemplo, eu percebia muito bem que, ao
imaginar um triângulo, fazia-se necessário que seus três ângulos fossem iguais a
dois retos; porém, malgrado isso, nada via que garantisse existir no mundo
qualquer triângulo. Enquanto, ao voltar a examinar a idéia que eu tinha de um
Ser perfeito, verificava que a existência estava aí inclusa, da mesma maneira que
na de um triângulo está incluso serem seus três ângulos iguais a dois retos, ou na
de uma esfera serem todas as suas partes igualmente distantes do seu centro, ou
ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é pelo menos tão certo que
Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe quanto seria qualquer demonstração de
geometria.
Mas o que leva muitas pessoas a se convencerem de que é difícil conhecêlo,
e também em conhecer o que é sua alma, é o fato de nunca alçarem o espírito
além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma habituadas a nada considerar
exceto na imaginação, que é uma maneira de pensar particular às coisas
materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes parece não ser inteligível. E
isto é bastante evidente pelo fato de os próprios filósofos terem por máxima, nas
escolas, que nada existe no entendimento que não haja estado primeiramente nos
sentidos, onde, contudo, é certo que as idéias de Deus e da alma nunca
estiveram. E me parece que todos aqueles que querem usar a imaginação para
compreendê-las se comportam da mesma maneira que se, para ouvir os sons ou
sentir os odores, quisessem utilizar-se dos olhos; salvo com esta diferença: que o
sentido da visão não nos assegura menos a verdade de seus objetos do que os do
olfato ou da audição; en quanto a nossa imaginação ou os nossos sentidos jamais
poderiam garantir-nos coisa alguma, se o nosso juízo não interviesse.
Afinal, se ainda há homens que não estejam totalmente convencidos da
existência de Deus e da alma, com as razões que apresentei, quero que saibam
que todas as outras coisas, a respeito das quais se consideram talvez certificados,
como a de possuírem um corpo, existirem astros e a Terra, e coisas parecidas,
são ainda menos certas. Pois, apesar de se ter dessas coisas uma certeza moral,
que é de tal ordem que, salvo sendo-se extravagante, parece impossível colocá-la
em dúvida; contudo, ao que concerne à certeza metafísica, não se pode negar, a
não ser que não tenhamos bom senso, que é motivo suficiente para não
possuirmos total segurança a respeito, o fato de observarmos que podemos da
mesma maneira imaginar, ao estarmos dormindo, que temos outro corpo, que
vemos outros astros e outra Terra, sem que isso seja verdade. Pois, de onde sabemos
que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos verdadeiros do
que os outros, se muitos, com freqüência, não são menos vivos e nítidos? E,
mesmo que os melhores espíritos estudem o caso tanto quanto lhes agradar, não
acredito que possam oferecer alguma razão que seja suficiente para dirimir essa
dúvida, se não presumirem a existência de Deus. Pois, em princípio, aquilo
mesmo que há pouco tomei como regra, ou seja, que as coisas que concebemos
bastante evidente e distintamente são todas verdadeiras, não é correto a não ser
porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque tudo o que existe em nós
se origina dele. De onde se conclui que as nossas idéias ou noções, por serem
coisas reais e oriundas de Deus em tudo em que são evidentes e distintas, só
podem por isso ser verdadeiras. De maneira que, se temos muitas vezes outras
que contêm falsidade, só podem ser as que possuem algo de confuso e obscuro,
porque nisso participam do nada, ou seja, são assim confusas em nós porque nós
não somos totalmente perfeitos. E é evidente que não causa menos aversão
admitir que a falsidade ou a imperfeição se originam de Deus, como tal, do que
admitir que a verdade ou a perfeição se originem do nada. Porém, se não
soubéssemos de maneira alguma que tudo quanto existe em nós de real e
verdadeiro provém de um ser perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem
nossas idéias, não teríamos razão alguma que nos garantisse que elas possuem a
perfeição de serem verdadeiras.
Depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tenha dado a certeza
dessa regra, é muito fácil compreender que os sonhos que imaginamos quando
dormimos não devem, de forma alguma, levar-nos a duvidar da verdade dos
pensamentos que nos ocorrem quando despertos. Pois, se sucedesse que, mesmo
dormindo, tivéssemos alguma idéia muito distinta, como, por exemplo, que um
geômetra criasse qualquer nova demonstração, o sono deste não a impediria de
ser verdadeira. E, quanto ao equívoco mais recorrente de nossos sonhos, que
consiste em nos representarem vários objetos tal como fazem nossos sentidos
exteriores, não importa que ele nos dê a oportunidade de desconfiar da verdade
de tais idéias, porque estas também podem nos enganar repetidas vezes, sem que
estejamos dormindo, como ocorre quando os que têm icterícia vêem tudo da cor
amarela, ou quando os astros ou outros corpos extremamente distantes de nós se
nos afiguram muito menores do que são. Pois, enfim, quer estejamos despertos,
quer dormindo, jamais devemos nos deixar convencer exceto pela evidência de
nossa razão. E deve-se observar que eu digo de nossa razão, de maneira alguma
de nossa imaginação ou de nossos sentidos. Porque, apesar de enxergarmos o sol
bastante claramente, não devemos julgar por isso que ele seja do tamanho que o
vemos; e bem podemos imaginar distintamente uma cabeça de leão enxertada no
corpo de uma cabra, sem que tenhamos de concluir, por isso, que no mundo
existe uma quimera; pois a razão não nos sugere que tudo quanto vemos ou
imaginamos seja verdadeiro, mas nos sugere realmente que todas as nossas
idéias ou noções devem conter algum fundamento de verdade; pois não seria
possível que Deus, que é todo perfeito e verídico, as tivesse colocado em nós
sem isso. E, pelo fato de nossos raciocínios nunca serem tão evidentes nem tão
completos durante o sono como durante a vigília, apesar de que às vezes nossas
imaginações sejam tanto ou mais vivas e patentes, ela nos sugere também que,
não podendo nossos pensamentos serem totalmente verdadeiros, porque não somos
totalmente perfeitos, tudo o que eles contêm de verdade deve encontrar-se
inevitavelmente naquele que temos quando despertos, mais do que em nossos
sonhos.

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