Aula 2
Excertos do Discurso do
Método- Descartes
PRIMEIRA PARTE
INEXISTE NO MUNDO coisa mais bem distribuída que o bom
senso,
visto que cada indivíduo acredita ser tão bem provido
dele que mesmo os mais
difíceis de satisfazer em qualquer outro aspecto não
costumam desejar possuí-lo
mais do que já possuem. E é improvável que todos se
enganem a esse respeito;
mas isso é antes uma prova de que o poder de julgar de
forma correta e discernir
entre o verdadeiro e o falso, que é justamente o que é
denominado bom senso ou
razão, é igual em todos os homens; e, assim sendo, de
que a diversidade de
nossas opiniões não se origina do fato de serem alguns
mais racionais que
outros, mas apenas de dirigirmos nossos pensamentos
por caminhos diferentes e
não considerarmos as mesmas coisas. Pois é
insuficiente ter o espírito bom, o
mais importante é aplicá-lo bem. As maiores almas são
capazes dos maiores
vícios, como também das maiores virtudes, e os que só
andam muito devagar
podem avançar bem mais, se continuarem sempre pelo
caminho reto, do que
aqueles que correm e dele se afastam.
Quanto a mim, nunca supus que meu espírito fosse em
nada mais perfeito
do que os dos outros; com freqüência desejei ter o
pensamento tão rápido, ou a
imaginação tão clara e diferente, ou a memória tão
abrangente ou tão pronta,
quanto alguns outros. E desconheço quaisquer outras
qualidades, afora as que
servem para o aperfeiçoamento
do espírito; pois, quanto à razão ou ao senso,
posto que é a única coisa que nos torna homens e nos
diferencia dos animais,
acredito que existe totalmente em cada um,
acompanhando nisso a opinião geral
dos filósofos, que afirmam não existir mais nem menos
senão entre os acidentes,
e não entre as formas ou naturezas dos indivíduos
de uma mesma espécie.
Mas não recearei dizer que julgo ter tido muita
felicidade de me haver
encontrado, a partir da juventude, em determinados
caminhos, que me levaram a
considerações e máximas, das quais formei um método,
pelo qual me parece que
eu consiga aumentar de forma gradativa meu
conhecimento, e de elevá-lo, pouco
a pouco, ao mais alto nível, a que a mediocridade de
meu espírito e a breve
duração de minha vida lhe permitam alcançar. Pois já
colhi dele tais frutos que,
apesar de no juízo que faço de mim próprio eu procure
inclinar-me mais para o
lado da desconfiança do que para o da presunção, e
que, observando com um
olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos
de todos os homens, não
exista quase nenhum que não me pareça fútil e inútil,
não deixo de lograr
extraordinária satisfação do progresso que creio já
ter feito na procura da
verdade e de conceber tais esperanças para o futuro
que, se entre as ocupações
dos homens puramente homens existe alguma que seja
solidamente boa e
importante, atrevo-me a acreditar que é aquela que
escolhi.
Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja
mais do que um
pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e
diamantes. Sei como estamos
sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como
também nos devem ser
suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a
nosso favor. Mas apreciaria
muito mostrar, neste discurso, quais os caminhos que
segui, e representar nele a
minha vida como num quadro, para que cada um possa
julgá -la e que, informado
pelo comentário geral das opiniões emitidas a respeito
dela, seja este uma nova
forma de me instruir, que acrescentarei àquelas de que
tenho o hábito de me
utilizar.
Portanto, meu propósito não é ensinar aqui o método
que cada qual deve
seguir para bem conduzir sua razão, mas somente
mostrar de que modo me
esforcei por conduzir a minha. Os que se aventuram a
fornecer normas devem
considerar-se mais hábeis do que aqueles a quem as
dão; e, se falham na menor
coisa, são por isso censuráveis. Mas, não propondo
este escrito senão como uma
história, ou, se o preferirdes, como uma fábula, na
qual, entre alguns exemplos
que se podem imitar, encontrar-se-ão talvez também
muitos outros que se terá
razão de não seguir, espero que ele será útil a
alguns, sem ser danoso a ninguém,
e que todos me serão gratos por minha franqueza.
Fui instruído nas letras desde a infância, e por me
haver convencido de que,
por intermédio delas, poder-se-ia adquirir um
conhecimento claro e seguro de
tudo o que é útil à vida, sentia extraordinário desejo
de aprendê-las. Porém,
assim que terminei esses
estudos, ao cabo do qual costuma-se ser recebido na
classe dos eruditos, mudei totalmente de opinião. Pois
me encontrava
embaraçado com tantas dúvidas e erros que me parecia
não haver conseguido
outro proveito, procurando instruir-me, senão o de ter
descoberto cada vez mais
a minha ignorância. E, contudo, estudara numa das mais
célebres escolas da
Europa, onde imaginava que devia haver homens sábios,
se é que havia em
algum lugar da Terra. Aprendera aí tudo o que os
outros aprendiam, e mesmo
não havendo me contentado com ciências que nos
ensinavam, lera todos os
livros que tratam daquelas que são reputadas as mais
curiosas e as mais raras,
que vieram a cair em minhas mãos. Além disso, eu conhecia
os juízos que os
outros faziam de mim; e não via de modo algum que me
julgassem inferior a
meus colegas, apesar de entre eles haver alguns já
destinados a ocupar os lugares
de nossos mestres. E, enfim, o nosso século parecia-me
tão luminoso e tão fértil
em bons espíritos como qualquer um dos anteriores, O
que me levava a tomar a
liberdade de julgar por mim todos os outros e de
pensar que não havia doutrina
no mundo que fosse tal como antes me haviam feito
presumir.
Apesar disso, não deixava de apreciar os exercícios
com os quais se
ocupam nas escolas. Sabia que as línguas que nelas se
aprendem são necessárias
ao entendimento dos livros antigos; que a gentileza
das fábulas estimula o
espírito; que as realizações notáveis das histórias o
fazem crescer, e que, sendo
lidas com discrição, ajudam a formar o juízo; que a
leitura de todos os bons
livros é igual a uma conversação com as pessoas mais
qualificadas dos séculos
passados, que foram seus autores, e até uma
conversação premeditada, na qual
eles nos revelam apenas seus melhores pensamentos; que
a eloqüência possui
forças e belezas incomparáveis; que a poesia tem
delicadezas e ternuras deveras
encantadoras; que as matemáticas têm invenções
bastante sutis, e que podem
servir muito, tanto para satisfazer os curiosos quanto
para facilitar todas as artes
e reduzir o trabalho dos homens; que os escritos que
tratam dos costumes contêm
muitos ensinamentos e muitos estímulos à virtude que
são muito úteis; que a
teologia ensina a ganhar o céu; que a filosofia ensina
a falar com coerência de
todas as coisas e de se fazer admirar pelos que
possuem menos erudição; que a
jurisprudência, a medicina e as outras ciências
proporcionam honras e riquezas
àqueles que as cultivam; e, enfim, que é bom havê-las
examinado a todas, até
mesmo as mais eivadas de superstição e as mais falsas,
a fim de conhecer-lhes o
exato valor e evitar ser por elas enganado.
Mas eu julgava já ter gasto bastante tempo com as
línguas, e também com a
leitura dos livros antigos, com suas histórias e suas fábulas.
Pois quase a mesma
coisa que conversar com os homens de outros séculos é
viajar. E bom saber
alguma coisa dos hábitos de diferentes povos, para que
julguemos os nossos
mais justamente e não pensemos que tudo quanto é
diferente dos nossos
costumes é ridículo e contrário à razão, como soem
fazer os que nada viram.
Contudo, quando gastamos
excessivo tempo em viajar, acabamos tornando-nos
estrangeiros em nossa própria terra; e quando somos
excessivamente curiosos
das coisas que se realizavam nos séculos passados,
ficamos geralmente muito
ignorantes das que se realizam no presente. Ademais,
as fábulas fazem imaginar
como possíveis muitos acontecimentos que não o são, e
até mesmo as histórias
mais verossímeis, se não mudam nem alteram o valor das
coisas para torná-las
mais dignas de serem lidas, ao menos deixam de
apresentar quase sempre as circunstâncias
mais baixas e menos insignes, de onde resulta que o
resto não parece
tal qual é, e que aqueles que norteiam seus hábitos
pelos exemplos que deles
tiram estão sujeitos a cair nas extravagâncias dos
heróis de nossos romances e a
conceber propósitos que superam suas forças.
Eu estimava muito a eloquência e estava apaixo nado
pela poesia; mas
acreditava que uma e outra fossem dons do espírito,
mais do que frutos do
estudo. Aqueles cujo raciocínio é mais ativo e que
melhor ordenam seus
pensamentos, com o intuito de torná-los claros e
inteligíveis, sempre podem
convencer melhor os outros daquilo que propõem, mesmo
que falem somente o
baixo bretão e nunca hajam aprendido retórica. E
aqueles cujas invenções são
mais agradáveis e que as sabem apresentar com o máximo
de floreio e suavidade
não deixariam de ser os melhores poetas, mesmo que a
arte poética lhes fosse
desconhecida.
Deleitava-me principalmente com as matemáticas, devido
à certeza e à
evidência de suas razões; mas ainda não percebia sua
verdadeira aplicação, e,
julgando que só serviam às artes mecânicas,
espantava-me de que, sendo seus
fundamentos tão seguros e sólidos, não se houvesse
construído sobre eles nada
de mais elevado. Da mesma forma que, ao contrário, eu
comparava os escritos
dos antigos pagãos que tratam de hábitos a magníficos
palácios erigidos apenas
sobre a areia e a lama. Elevam muito alto as virtudes
e as apresentam como as
mais dignas de estima entre todas as coisas que
existem no mundo; mas não
ensinam bastante a conhecê-las, e freqüentemente o que
chamam com um nome
tão belo não passa de uma insensibilidade, ou de um
orgulho, ou de um
desespero, ou de um parricídio.
Eu venerava a nossa teologia e pretendia, como
qualquer um, ganhar o céu;
porém, tendo aprendido, como algo muito certo, que o
seu caminho não está
menos franqueado aos mais ignorantes do que aos mais
sábios e que as verdades
reveladas que para lá conduzem estão além de nossa inteligência,
não me
atreveria a submetê-las à debilidade de meus
raciocínios, e pensava que, para
empreender sua análise e obter êxito, era preciso
receber alguma extraordinária
assistência do céu e ser mais do que homem.
Nada direi a respeito da filosofia, exceto que, vendo
que foi cultivada pelos
mais elevados espíritos que viveram desde muitos
séculos e que, apesar disso,
nela ainda não se encontra
uma única coisa a respeito da qual não haja discussão,
e consequentemente que não seja duvidosa, eu não alimentava
esperança alguma
de acertar mais que os outros; e que, ao considerar
quantas opiniões distintas,
defendidas por homens eruditos, podem existir acerca
de um mesmo assunto,
sem que possa haver mais de uma que seja verdadeira,
achava quase como falso
tudo quanto era apenas provável.
A respeito das outras ciências, por tomarem seus
princípios da filosofia,
acreditava que nada de sólido se podia construir sobre
alicerces tão pouco
firmes. E nem a honra, nem o lucro que elas prometem,
eram suficientes para me
exortar a aprendê-las; pois graças a Deus não me
sentia de maneira alguma numa
condição que me obrigasse a converter a ciência num
ofício, para o alívio de
minha fortuna; e se bem que não desprezasse a glória
como um cínico, fazia,
contudo, muito pouca questão daquela que eu só podia
esperar obter com falsos
títulos. Por fim, no que diz respeito às más
doutrinas, julgava já conhecer
suficientemente o que valiam, para não mais correr o
risco de ser enganado, nem
pelas promessas de um alquimista, nem pelas predições
de um astrólogo, nem
pelas imposturas de um mágico, nem pelas artimanhas ou
arrogâncias dos que
manifestam saber mais do que realmente sabem.
Aqui está por que, apenas a idade me possibilitou sair
da submissão aos
meus preceptores, abandonei totalmente o estudo das
letras. E, decidindo-me a
não mais procurar outra ciência além daquela que
poderia encontrar em mim
mesmo, ou então no grande livro do mundo, aproveitei o
resto de minha
juventude para viajar, para ver cortes e exércitos,
para freqüentar pessoas de
diferentes humores e condições, para fazer variadas
experiências, para pôr a mim
mesmo à prova nos reencontros que o destino me
propunha e, por toda parte,
para refletir a respeito das coisas que se me
apresentavam, a fim de que eu
pudesse tirar algum proveito delas. Pois acreditava
poder encontrar muito mais
verdade nos raciocínios que cada um forma no que se
refere aos negócios que
lhe interessam, e cujo desfecho, se julgou mal, deve
penalizá-lo logo em seguida,
do que naqueles que um homem de letras forma em seu
gabinete a respeito de
especulações que não produzem efeito algum e que não
lhe acarretam outra
conseqüência salvo, talvez, a de lhe proporcionarem
tanto mais vaidade quanto
mais afastadas do senso comum, por causa do outro
tanto de espírito e artimanha
que necessitou empregar no esforço de torná-las
prováveis. E eu sempre tive um
enorme desejo de aprender a diferenciar o verdadeiro
do falso, para ver
claramente minhas ações e caminhar com segurança nesta
vida.
A verdade é que, ao limitar-me a observar os costumes
dos outros homens,
pouco encontrava que me satisfizesse, pois percebia
neles quase tanta
diversidade como a que notara anteriormente entre as
opiniões dos filósofos. De
forma que o maior proveito que daí tirei foi que,
vendo uma quantid ade de coisas
que, apesar de nos parecerem muito extravagantes e
ridículas, são comumente
recebidas e aprovadas por
outros grandes povos, aprendi a não acreditar com
demasiada convicção em nada do que me havia sido
inculcado só pelo exemplo e
pelo hábito; e, dessa maneira, pouco a pouco,
livrei-me de muitos enganos que
ofuscam a nossa razão e nos tornar menos capazes de
ouvir a razão. Porém, após
dedicar-me por alguns anos em estudar assim no livro
do mundo, e em procurar
adquirir alguma experiência, tomei um dia a decisão de
estudar também a mim
próprio e de empregar todas as forças de meu espírito
na escolha dos caminhos
que iria seguir. Isso, a meu ver,, trouxe-me muito
melhor resultado do que se
nunca tivesse me distanciado
de meu país e de meus livros.
QUARTA PARTE
NÃO ESTOU SEGURO se deva falar-vos a respeito das
primeiras
meditações que aí realizei; já que por serem tão
metafísicas e tão incomuns, é
possível que não serão apreciadas por todos. Contudo,
para que seja possível
julgar se os fundamentos que escolhi são
suficientemente firmes, vejo-me, de
alguma forma, obrigado a falar-vos delas. Havia
bastante tempo observara que,
no que concerne aos costumes, é às vezes preciso
seguir opiniões, que sabemos
serem muito duvidosas, como se não admitissem dúvidas,
conforme já foi dito
acima; porém, por desejar então dedicar-me apenas a
pesquisa da verdade, achei
que deveria agir exatamente ao contrário, e rejeitar
como totalmente falso tudo
aquilo em que pudesse supor a menor dúvida, com o
intuito de ver se, depois
disso, não restaria algo em meu crédito que fosse
completamente incontestável.
Ao considerar que os nossos sentidos às vezes nos
enganam, quis presumir que
não existia nada que fosse tal como eles nos fazem
imaginar. E, por existirem
homens que se enganam ao raciocinar, mesmo no que se
refere às mais simples
noções de geometria, e cometem paralogismos, rejeitei
como falsas, achando que
estava sujeito a me enganar como qualquer outro, todas
as razões que eu tomara
até então por demonstrações. E, enfim, considerando
que quaisquer pensamentos
que nos ocorrem quando estamos acordados nos podem
também ocorrer
enquanto dormimos, sem que exista nenhum, nesse caso,
que seja correto, decidi
fazer de conta que todas as coisas que até então
haviam entrado no meu espírito
não eram mais corretas do que as ilusões de meus
sonhos. Porém, logo em
seguida, percebi que, ao mesmo tempo que eu queria
pensar que tudo era falso,
fazia-se necessário que eu, que pensava, fosse alguma
coisa. E, ao notar que esta
verdade: eu penso, logo existo, era tão sólida
e tão correta que as mais
extravagantes suposições dos céticos não seriam
capazes de lhe causar abalo,
julguei que podia considerá-la, sem escrúpulo algum, o
primeiro princípio da
filosofia que eu procurava.
Mais tarde, ao analisar com atenção o que eu era, e
vendo que podia
presumir que não possuía corpo algum e que não havia
mundo algum, ou lugar
onde eu existisse, mas que nem por isso podia supor
que não existia; e que, ao
contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da
verdade das outras
coisas, resultava com bastante evidência e certeza que
eu existia; ao passo que,
se somente tivesse parado de pensar, apesar de que
tudo o mais que alguma vez
imaginara fosse verdadeiro, já não teria razão alguma
de acreditar que eu tivesse
existido; compreendi, então,
que eu era uma substância cuja essência ou natureza
consiste apenas no pensar, e que, para ser, não
necessita de lugar algum, nem
depende de qualquer coisa material. De maneira que
esse eu, ou seja, a alma, por
causa da qual sou o que sou, é co mpletamente distinta
do corpo e, também, que é
mais fácil de conhecer do que ele, e, mesmo que este
nada fosse, ela não deixaria
de ser tudo o que é.
Depois disso, considerei o que é necessário a uma
proposição para ser
verdadeira e correta; pois, já que encontrara uma que
eu sabia ser exatamente
assim, pensei que devia saber também em que consiste
essa certeza. E, ao
perceber que nada há no eu penso, logo existo, que
me dê a certeza de que digo a
verdade, salvo que vejo muito claramente que, para
pensar, é preciso existir,
concluí que poderia tomar por regra geral que as
coisas que concebemos muito
clara e distintamente são todas verdadeiras, havendo
somente alguma dificuldade
em notar bem quais são as que concebemos distintamente.
Depois, havendo refletido a respeito daquilo que eu
duvidava, e que, por
conseguinte, meu ser não era totalmente perfeito, pois
via claramente que o
conhecer é perfeição maior do que o duvidar, decidi
procurar de onde aprendera
a pensar em algo mais perfeito do que eu era; e
descobri, com evidência, que
devia ser de alguma natureza que fosse realmente mais
perfeita. No que se refere
aos pensamentos que eu formulava sobre muitas outras
coisas fora de mim,
como a respeito do céu, da Terra, da luz, do calor e
de mil outras, não me era tão
difícil saber de onde vinham, porque, não notando
neles nada que me parecesse
torná-los superiores a mim, podia julgar que, se
fossem verdadeiros, seriam
dependências de minha natureza, na medida em que esta
possuía alguma
perfeição; e se não o eram, que eu os formulava a
partir do nada, ou seja, que
existiam em mim pelo que eu possuía de falho. Mas não
podia ocorrer o mesmo
com a idéia de um ser mais perfeito do que o meu; pois
fazê-la sair do nada era
evidentemente impossível; e, visto que não é menos
repulsiva a idéia de que o
mais perfeito seja uma conseqüência e uma dependência
do menos perfeito do
que a de admitir que do nada se origina alguma coisa,
eu não podia tirá-la
tampouco de mim próprio. De maneira que restava
somente que tivesse sido
colocada em mim por uma natureza que fosse de fato
perfeita do que a minha, e
que possuísse todas as perfeições de que eu poderia
ter alguma idéia, ou seja,
para dizê-lo numa única palavra, que fosse Deus. A
isso acrescentei que,
admitido que conhecia algumas perfeições que eu não
tinha, não era o único ser
que existia (usarei aqui livremente, se vos aprouver,
alguns termos da Escola);
mas que devia necessariamente haver algum outro mais
perfeito, do qual eu
dependesse e de quem tivesse recebido tudo o que
possuía. Pois, se eu fosse
sozinho e independente de qualquer outro, de maneira
que tivesse recebido, de
mim próprio, todo esse pouco mediante o qual
participava do Ser perfeito,
poderia receber de mim, pelo mesmo motivo, todo o
restante que sabia faltar-me,
e ser assim eu próprio infinito, eterno, imutável,
onisciente, todo-poderoso, e enfim ter todas as perfeições que podia perceber
existirem em Deus. Pois, de
acordo com os raciocínios que acabo de fazer, para
conhecer a natureza de Deus,
tanto quanto a minha o era capaz, era suficiente
considerar, a respeito de todas as
coisas de que encontrava em mim qualquer idéia, se era
ou não perfeição possuí-las,
e tinha certeza de que nenhuma das que eram marcadas
por alguma
imperfeição existia nele, mas que todas as outras
existiam. Dessa forma, eu
notava que a dúvida, a inconstância, a tristeza e
coisas parecidas não podiam
existir nele, porque eu mesmo apreciaria muito ser
desprovido delas. Ademais,
eu tinha idéias acerca de muitas coisas sensíveis e
corporais; pois, apesar de
presumir que estava sonhando e que tudo quanto via e
imaginava era falso, não
podia negar, não obstante, que as idéias a respeito
não existissem
verdadeiramente em meu pensamento; porém, por já haver
reconhecido em mim
com bastante clareza que a natureza inteligente é
distinta da corporal,
considerando que toda a composição testemunha
dependência, e que a
dependência é evidentemente uma falha, julguei a
partir disso que não podia ser
uma perfeição em Deus o ser composto dessas duas
naturezas, e que, em
conseqüência, Ele não o era, mas que, se existiam
alguns corpos no mundo, ou
então algumas inteligências, ou outras naturezas, que
não fossem totalmente
perfeitos, seu ser deveria depender do poder de Deus,
de tal maneira que não
pudessem subsistir sem Ele por um único instante.
Em seguida a isso, eu quis procurar outras verdades, e
tendo-me
estabelecido o objeto dos geômetras, que eu concebia
como um corpo contínuo,
ou um espaço infinitamente extenso em comprimento,
largura e altura ou
profundidade, divisível em diversas partes que podiam
ter diferentes figuras e
grandezas, e ser movidas ou transpostas de todas as
maneiras, pois os geômetras
conjeturam tudo isto em seu objeto, examinava algumas
de suas demonstrações
mais simples. E, ao perceber que essa grande certeza,
que todos lhes atribuem, se
alicerça somente no fato de serem concebidas com
evidência, segundo a regra
que há pouco manifestei, notei também que nada existia
nelas que me garantisse
a existência de seu objeto. Pois, por exemplo, eu
percebia muito bem que, ao
imaginar um triângulo, fazia-se necessário que seus
três ângulos fossem iguais a
dois retos; porém, malgrado isso, nada via que
garantisse existir no mundo
qualquer triângulo. Enquanto, ao voltar a examinar a
idéia que eu tinha de um
Ser perfeito, verificava que a existência estava aí
inclusa, da mesma maneira que
na de um triângulo está incluso serem seus três
ângulos iguais a dois retos, ou na
de uma esfera serem todas as suas partes igualmente
distantes do seu centro, ou
ainda mais evidentemente; e que, por conseguinte, é
pelo menos tão certo que
Deus, que é esse Ser perfeito, é ou existe quanto
seria qualquer demonstração de
geometria.
Mas o que leva muitas pessoas a se convencerem de que
é difícil conhecêlo,
e também em conhecer o que é
sua alma, é o fato de nunca alçarem o espírito
além das coisas sensíveis e de estarem de tal forma
habituadas a nada considerar
exceto na imaginação, que é uma maneira de pensar
particular às coisas
materiais, que tudo quanto não é imaginável lhes
parece não ser inteligível. E
isto é bastante evidente pelo fato de os próprios
filósofos terem por máxima, nas
escolas, que nada existe no entendimento que não haja
estado primeiramente nos
sentidos, onde, contudo, é certo que as idéias de Deus
e da alma nunca
estiveram. E me parece que todos aqueles que querem
usar a imaginação para
compreendê-las se comportam da mesma maneira que se,
para ouvir os sons ou
sentir os odores, quisessem utilizar-se dos olhos;
salvo com esta diferença: que o
sentido da visão não nos assegura menos a verdade de
seus objetos do que os do
olfato ou da audição; en quanto a nossa imaginação ou
os nossos sentidos jamais
poderiam garantir-nos coisa alguma, se o nosso juízo
não interviesse.
Afinal, se ainda há homens que não estejam totalmente
convencidos da
existência de Deus e da alma, com as razões que
apresentei, quero que saibam
que todas as outras coisas, a respeito das quais se
consideram talvez certificados,
como a de possuírem um corpo, existirem astros e a
Terra, e coisas parecidas,
são ainda menos certas. Pois, apesar de se ter dessas
coisas uma certeza moral,
que é de tal ordem que, salvo sendo-se extravagante,
parece impossível colocá-la
em dúvida; contudo, ao que concerne à certeza metafísica,
não se pode negar, a
não ser que não tenhamos bom senso, que é motivo
suficiente para não
possuirmos total segurança a respeito, o fato de
observarmos que podemos da
mesma maneira imaginar, ao estarmos dormindo, que
temos outro corpo, que
vemos outros astros e outra Terra, sem que isso seja
verdade. Pois, de onde sabemos
que os pensamentos que nos surgem em sonhos são menos
verdadeiros do
que os outros, se muitos, com freqüência, não são
menos vivos e nítidos? E,
mesmo que os melhores espíritos estudem o caso tanto
quanto lhes agradar, não
acredito que possam oferecer alguma razão que seja
suficiente para dirimir essa
dúvida, se não presumirem a existência de Deus. Pois,
em princípio, aquilo
mesmo que há pouco tomei como regra, ou seja, que as
coisas que concebemos
bastante evidente e distintamente são todas
verdadeiras, não é correto a não ser
porque Deus é ou existe, e é um ser perfeito, e porque
tudo o que existe em nós
se origina dele. De onde se conclui que as nossas
idéias ou noções, por serem
coisas reais e oriundas de Deus em tudo em que são
evidentes e distintas, só
podem por isso ser verdadeiras. De maneira que, se
temos muitas vezes outras
que contêm falsidade, só podem ser as que possuem algo
de confuso e obscuro,
porque nisso participam do nada, ou seja, são assim
confusas em nós porque nós
não somos totalmente perfeitos. E é evidente que não
causa menos aversão
admitir que a falsidade ou a imperfeição se originam
de Deus, como tal, do que
admitir que a verdade ou a perfeição se originem do
nada. Porém, se não
soubéssemos de maneira alguma que tudo quanto existe
em nós de real e
verdadeiro provém de um ser
perfeito e infinito, por claras e distintas que fossem
nossas idéias, não teríamos razão alguma que nos
garantisse que elas possuem a
perfeição de serem verdadeiras.
Depois que o conhecimento de Deus e da alma nos tenha
dado a certeza
dessa regra, é muito fácil compreender que os sonhos
que imaginamos quando
dormimos não devem, de forma alguma, levar-nos a
duvidar da verdade dos
pensamentos que nos ocorrem quando despertos. Pois, se
sucedesse que, mesmo
dormindo, tivéssemos alguma idéia muito distinta,
como, por exemplo, que um
geômetra criasse qualquer nova demonstração, o sono
deste não a impediria de
ser verdadeira. E, quanto ao equívoco mais recorrente
de nossos sonhos, que
consiste em nos representarem vários objetos tal como
fazem nossos sentidos
exteriores, não importa que ele nos dê a oportunidade
de desconfiar da verdade
de tais idéias, porque estas também podem nos enganar
repetidas vezes, sem que
estejamos dormindo, como ocorre quando os que têm
icterícia vêem tudo da cor
amarela, ou quando os astros ou outros corpos
extremamente distantes de nós se
nos afiguram muito menores do que são. Pois, enfim,
quer estejamos despertos,
quer dormindo, jamais devemos nos deixar convencer
exceto pela evidência de
nossa razão. E deve-se observar que eu digo de nossa
razão, de maneira alguma
de nossa imaginação ou de nossos sentidos. Porque,
apesar de enxergarmos o sol
bastante claramente, não devemos julgar por isso que
ele seja do tamanho que o
vemos; e bem podemos imaginar distintamente uma cabeça
de leão enxertada no
corpo de uma cabra, sem que tenhamos de concluir, por
isso, que no mundo
existe uma quimera; pois a razão não nos sugere que
tudo quanto vemos ou
imaginamos seja verdadeiro, mas nos sugere realmente
que todas as nossas
idéias ou noções devem conter algum fundamento de
verdade; pois não seria
possível que Deus, que é todo perfeito e verídico, as
tivesse colocado em nós
sem isso. E, pelo fato de nossos raciocínios nunca
serem tão evidentes nem tão
completos durante o sono como durante a vigília,
apesar de que às vezes nossas
imaginações sejam tanto ou mais vivas e patentes, ela
nos sugere também que,
não podendo nossos pensamentos serem totalmente
verdadeiros, porque não somos
totalmente perfeitos, tudo o que eles contêm de
verdade deve encontrar-se
inevitavelmente naquele que temos quando despertos,
mais do que em nossos
sonhos.
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