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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Filosofia - Aula 8



Aula 8

Excertos do Contrato Social - Rousseau


I -- Assunto deste primeiro livro.
O homem nasceu livre, e em toda parte se encontra sob ferros. De tal modo
acredita-se o senhor dos outros, que não deixa de ser mais escravo que eles. Como é feita essa mudança? Ignoro-o. Que é que a torna legítima? Creio poder resolver esta questão.
Se eu considerasse tão-somente a força e o efeito que dela deriva, diria:
Enquanto um povo é constrangido a obedecer e obedece, faz bem; tão logo ele possa sacudir o jugo e
o sacode, faz ainda melhor; porque, recobrando a liberdade graças ao mesmo direito com o qual lha
arrebataram, ou este lhe serve de base para retomá-la ou não se prestava em absoluto para subtraí-la. Mas
a ordem social é um direito sagrado que serve de alicerce a todos os outros. Esse direito, todavia,
não vem da Natureza; está, pois, fundamentado sobre convenções. Mas antes de chegar aí, devo estabelecer o
que venho de avançar.
II -- Das primeiras sociedades.
A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família. As crianças apenas permanecem
ligadas ao pai o tempo necessário que dele necessitam para a sua conservação. Assim que cesse tal
necessidade, dissolve-se o laço natural. As crianças, eximidas da obediência devida ao pai, o pai isento
dos cuidados devidos aos filhos, reentram todos igualmente na independência. Se continuam a
permanecer unidos, já não é naturalmente, mas voluntariamente, e a própria família apenas se mantém
por convenção. Esta liberdade comum é uma conseqüência da natureza do homem. Sua primeira lei
consiste em proteger a própria conservação, seus primeiros cuidados os devidos a si mesmo, e tão logo
se encontre o homem na idade da razão, sendo o único juiz dos meios apropriados à sua conservação,
torna-se por sí seu próprio senhor.
É a família, portanto, o primeiro modelo das sociedades políticas; o chefe é a imagem do pai, o povo a
imagem dos filhos, e havendo nascido todos livres e iguais, não alienam a liberdade a não ser em troca da
sua utilidade. Toda a diferença consiste em que, na família, o amor do pai pelos filhos o compensa dos
cuidados que estes lhe dão, ao passo que, no Estado, o prazer de comandar substitui o amor que o chefe
não sente por seus povos. Grotius nega que todo poder humano seja estabelecido em favor dos governados.
Sua mais freqüente maneira de raciocinar consiste sempre em estabelecer o direito pelo fato (2) .
Poder-se-ia empregar um método mais conseqüente, não porém mais favorável aos tiranos. É, pois duvidoso,
segundo Grotius, saber se o gênero humano pertence a uma centena de homens, ou se esta centena de homens é que pertence ao gênero humano, mas ele parece pender, em todo o seu livro, para a
primeira opinião. É este também o sentimento de Hobbes. Eis assim a espécie humana dividida em rebanhos
de gado, cada qual com seu chefe a guardá-la, a fim de a devorar.
Assim como um pastor é de natureza superior à de seu rebanho, os pastores de homens, que são seus
chefes, são igualmente de natureza superior à de seus povos. Desta maneira raciocinava, no relato de Fílon, o imperador Calígula, concluindo muito acertadamente dessa analogia que os reis eram deuses, ou que os povos eram animais. O raciocínio de Calígula retorna ao de Hobbes e ao de Grotius. Aristóteles,
antes deles todos, tinha dito que os homens não são naturalmente iguais, e que uns nascem para escravos e
outros para dominar. Aristóteles tinha razão, mas ele tomava o efeito pela causa. Todo homem nascido escravo nasce para escravo, nada é mais certo: os escravos tudo perdem em seus grilhões, inclusive
o desejo de se livrarem deles; apreciam a servidão, como os companheiros de Ulisses estimavam o próprio
embrutecimento. Portanto, se há escravos por natureza, é porque houve escravos contra a
natureza. A força constituiu os primeiros escravos, a covardia os perpetuou.
Eu nada disse do rei Adão, nem do imperador Noé, pai de três grandes monarcas que partilharam entre si
o Universo, como o fizeram os filhos de Saturno, nos quais se acreditou reconhecer aqueles. Espero que
me agradeçam por esta moderação, porque, descendente que sou de um desses príncipes, quiçá do ramo
mais velho, quem sabe se, pela verificação dos títulos, eu não me sentiria de algum modo como o
legítimo rei do gênero humano? Seja como for, não se pode deixar de convir em
que Adão não foi soberano do mundo como Robinson o foi em sua ilha, enquanto permaneceu o único
habitante; e o que havia de cômodo nesse império era o fato de que o monarca, seguro em seu trono,
não tinha a recear nem rebeliões, nem guerras, nem conspirações.
III -- Do direito do mais forte.
O mais forte não é nunca assaz forte para ser sempre o senhor, se não transforma
essa força em direito e a obediência em dever. Daí o direito do mais forte, direito tomado ironicamente na
aparência e realmente estabelecido em princípio. Mas explicar-nos-ão um dia esta palavra? A força é
uma potência física; não vejo em absoluto que moralidade pode resultar de seus efeitos. Ceder à força
constitui um ato de necessidade, não de vontade; é no máximo um ato de prudência. Em que sentido
poderá ser um dever? Imaginemos um instante esse suposto direito. Eu disse que disso não resulta
senão um galimatias inexplicável; porque tão logo seja a força a que faz o direito, o efeito mudab com a causa; toda força que sobrepuja a primeira sucede a seu direito. Assim que se possa desobedecer
impunemente, pode-se fazê-lo legitimamente, e, uma vez que o mais forte sempre tem razão, trata-se de cuidar de ser o mais forte. Ora, que é isso senão um direito que perece quando cessa a força? Se é preciso
obedecer pela força, não é necessário obedecer por dever, e se não mais se é forçado a obedecer, não se é a
isso mais obrigado. Vê-se, pois, que a palavra direito nada acrescenta à força; não significa aqui
coisa nenhuma.
Obedecei aos poderosos. Se isto quer dizer: cedei à força, o preceito é bom, mas
supérfluo; eu respondo que ele jamais será violado. Toda potência vem de Deus, confesso-o; mas toda
doença igualmente vem dele: quer isto dizer que se não deva chamar o médico? Quando um assaltante me
surpreende no canto de um bosque, sou forçado a dar-lhe a bolsa; mas no caso de eu poder subtrai-la,
sou em sã consciência obrigado a entregar-lha?. Afinal a pistola que ele empunha é também um poder.
Convenhamos, pois, que força não faz direito, e que não se é obrigado a obedecer senão às autoridades
legítimas. Assim, minha primitiva pergunta sempre retorna.
IV -- Da escravidão.
Uma vez que homem nenhum possui uma autoridade natural sobre seu semelhante, e pois que a força não produz nenhum direito, restam pois as convenções como base de toda autoridade
legítima entre os homens. Se um particular diz Grotius, pode alienar a liberdade e tornar-se escravo de um
senhor, por que não poderia todo um povo alienar a sua e se fazer vassalo de um rei? Há aqui excesso
de termos equívocos, necessitados de explicação; mas atenhamo-nos ao termo alienar. Alienar é dar ou
vender. Ora, um homem que se escraviza a outro não se dá, vende-se, pelo menos em troca da
subsistência; mas um povo, por que se vende ele? Longe se acha um rei de fornecer a subsistência dos
vassalos; ao contrário, deles é que tira a própria, e, segundo Rabelais, um rei não vive de pouco. Os vassalos
dão, portanto, suas próprias pessoas com a condição de que se lhes tome também a fazenda. Não vejo o
que lhes resta a conservar. Dir-se-á que o déspota assegura aos vassalos a tranqüilidade civil. Seja; mas
que ganham eles com isso, se as guerras, que a ambição do déspota ocasiona, se sua insaciável avidez, se
os vexames de seu ministério os aflige mais do que o fariam as próprias dissensões? Que ganham
eles aí, se essa mesma tranqüilidade constitui uma de suas misérias? Vive-se igualmente tranqüilo nos
calabouços; basta isto para se viver bem? Os gregos encerrados no antro do ciclope ali viviam
tranqüilos, à espera de que chegasse a sua vez de serem devorados.
Dizer que um homem se dá gratuitamente é dizer coisa absurda e inconcebível; um tal ato é ilegítimo e
nulo, pelo simples fato de não se achar de posse de seu juízo quem isto comete. Dizer a mesma coisa de
todo um povo é supor um povo de loucos: a loucura não faz direito.
Mesmo que cada qual pudesse alienar-se a si mesmo, não poderia alienar os filhos: estes nascem homens
e livres; sua liberdade pertence-lhes; ninguém, exceto eles próprios, tem o direito de dela dispor. Antes
de atingirem a idade da razão, pode o pai estipular, em nome deles, condições para a sua conservação, para o seu bem-estar, mas não os pode dar irrevogável e incondicionalmente, porque tal dom é contrário
aos fins da Natureza e sobrepuja os direitos da paternidade. Portanto, para que
um governo arbitrário fosse legítimo, seria preciso que o povo, em cada geração, fosse senhor de o
admitir ou rejeitar; mas então tal governo já não seria arbitrário.
Renunciar à própria liberdade é o mesmo que renunciar à qualidade de homem, aos direitos da
Humanidade, inclusive aos seus deveres. Não há nenhuma compensação possível para quem quer que
renuncie a tudo. Tal renúncia é incompatível com a natureza humana, e é arrebatar toda moralidade a suas ações, bem como subtrair toda liberdade à sua vontade. Enfim, não passa de vã e contraditória convenção estipular, de um lado, uma autoridade absoluta, e, de outro, uma obediência sem limites. Não é claro não estar a gente a nada obrigada em relação àquele de quem se tem o direito de tudo exigir? E esta simples condição, sem equivalência, sem permuta, não arrasta a nulidade do ato? Que direito teria meu escravo contra mim, uma vez que me pertence tudo quanto ele possui, e, sendo meu o seu direito, esse meu direito contra mim mesmo não é porventura um termo sem sentido?
Grotius e outros extraem da guerra uma outra origem do pretenso direito de escravatura. Segundo eles,
tendo o vencedor o direito de matar o vencido, pode este resgatar a vida às expensas de sua liberdade,
convenção tanto mais legítima porque beneficia os dois. Mas é claro que esse pretenso direito de matar os vencidos não resulta de nenhuma maneira do estado de guerra, pelo simples fato de que os homens, vivendo na sua primitiva independência, não possuem de modo algum relações assaz freqüentes entre si para constituírem nem o estado de paz nem o estado de guerra; naturalmente, não são em absoluto inimigos. É a relação das coisas, e não dos homens, que constitui a guerra, e como o estado de guerra não pode nascer de simples relações pessoais, mas unicamente de relações reais, a guerra privada, ou de homem contra homem, não pode existir, nem no estado natural, em que não há nenhuma propriedade constante, nem no estado
social, em que tudo se encontra sob a autoridade das leis. Os combates particulares, os duelos, os encontros, são atos que de modo algum constituem um estado; e, no que concerne às guerras privadas, autorizadas pelas instituições de Luís IX, rei de França, e suspensas pela paz de Deus, trata-se de abusos do governo feudal, sistema absurdo como jamais houve, contrário aos princípios do direito natural e a toda organização política.
Não é, pois, a guerra uma relação de homem para homem, mas uma relação de Estado para Estado, na qual os particulares apenas acidentalmente são inimigos, não na qualidade de homens, nem mesmo como cidadãos, mas como soldados; não como membros da pátria, mas como seus defensores. Enfim, cada
Estado não pode ter como inimigo senão outro Estado, nunca homens, entendido que entre coisas de
naturezas diversas é impossível fixar uma verdadeira relação.
Tal princípio está conforme as máximas estabelecidas no decorrer de todos os tempos e a prática
constante de todos os povos civilizados. As declarações de guerra constituem advertências dirigidas
menos às autoridades que a seus vassalos. O estrangeiro, seja rei, particular, ou povo, que roube, mate ou
detenha os vassalos, sem declaração de guerra ao príncipe, não é um inimigo, é um salteador. Mesmo em
plena guerra, um príncipe justo apropria-se, em país inimigo, completamente de tudo que pertence ao
público, mas respeita a pessoa e os bens dos particulares; respeita direitos
sobre os quais estão alicerçados os seus. Como o objetivo da guerra consiste em destruir o Estado
inimigo, tem-se o direito de matar os defensores enquanto estiverem com as armas na mão; mas tão logo as
deponham e se rendam, cessam de ser inimigos ou instrumentos do inimigo, voltam a ser simplesmente
homens, e não mais se dispõe de direito sobre suas vidas. Pode-se por vezes matar o Estado sem matar
um único de seus membros; ora, a guerra não dá nenhum direito desnecessário ao seu objetivo.
Estes princípios não são os mesmos de Grotius; não estão alicerçados nas autoridades de poetas, mas derivam da natureza das coisas e são baseados na razão.
A respeito do direito de conquista, não há outro fundamento afora a lei do mais
forte. Se a guerra não dá ao vencedor o direito de massacrar os povos vencidos, o direito, que ele não
possui, não pode estabelecer o de os escravizar. Só se tem o direito de matar o inimigo quando não se pode
escravizá-lo; o direito de o escravizar não vem por conseguinte do direito de matá-lo; constitui, pois, uma
troca iníqua fazê-lo comprar, ao preço da liberdade, a vida, sobre a qual não se possui nenhum
direito. Estabelecendo-se o direito de vida e morte sobre o direito de escravatura, e o direito de
escravatura sobre o direito de vida e morte, não está claro que tombamos no círculo vicioso?Mesmo admitindo esse terrível direito de tudo matar, afirmo que um escravo obtido na guerra, ou um povo conquistado, só é constrangido a obedecer ao senhor enquanto a isto for forçado. Tomando-lhe um equivalente à sua vida, o vencedor não lhe concedeu graça: ao invés de o matarsem proveito, matou-o inutilmente. E não tendo adquirido nenhuma autoridade junto à força, o estado de guerra subsiste entre eles como anteriormente; sua própria relação é o efeito disso, e o uso do
direito da guerra não supõe nenhum tratado de paz. Concluíram uma convenção, quando muito; mas tal
convenção, longe de destruir o estado de guerra, supõe a sua continuidade.
Assim, por qualquer lado que se encarem as coisas, é nulo o direito de
escravizar, não só pelo fato de ser ilegítimo, como porque é absurdo e nada significa. As palavras escravatura e direito são contraditórias, excluem-se mutuamente. Seja de homem para homem, seja de um homem para um povo, este discurso será igualmente insensato: ``Faço contigo um contrato, todo em teu prejuízo e
todo em meu proveito, que eu observarei enquanto me aprouver, e que tu observarás enquanto me aprouver.''
V -- É preciso remontar sempre a um primeiro convênio.
Mesmo se eu conciliasse tudo o que refutei até aqui, os favorecedores do despotismo não estariam, a este
respeito, mais avançados. Sempre haverá grande diferença entre submeter uma
multidão e reger uma sociedade. No fato de homens esparsos serem sucessivamente subjugados a um
único, independente do número que constituam, não vejo nisto senão um senhor e escravos, e não um povo
e seu chefe; é, se se quiser, um ajuntamento, mas de modo algum uma associação; não há nisto nem bem
público, nem corpo político. Tal homem, tenha embora escravizado a metade do mundo, não deixa de
ser sempre um particular; seu interesse, separado do interesse dos outros, não é senão um
interesse privado. Se esse mesmo homem vier a perecer, seu império, após si, ficará disperso e desligado,
como um carvalho que se desfaz e tomba reduzido a um montão de cinzas, depois de consumido pelo fogo.
Um povo, diz Grotius, pode entregar-se a um rei. Segundo Grotius, um povo é,pois, um povo antes de se entregar a um rei. Essa doação é um ato civil; supõe uma deliberação pública.
Antes, portanto, de examinar o ato pelo qual o povo elege um rei, seria bom examinar o ato pelo qual o povo é um povo, porque esse ato, sendo necessariamente anterior ao outro, constitui o verdadeiro fundamento da
sociedade. Com efeito, se não houvesse em absoluto convênio anterior, onde estaria, a menos
que a eleição fosse unânime, a obrigação, por parte do pequeno número, de submeter-se à escolha do
grande número, e como cem indivíduos que desejam um senhor podem ter um direito de votar por dez que
de modo nenhum o desejam? A lei da pluralidade dos sufrágios é por si mesma um estabelecimento de convênio e supõe, ao menos uma vez, a unanimidade.
VI -- Do pacto social.
Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua
conservação no estado natural, os arrastam, por sua resistência, sobre as forças que podem ser
empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então esse estado primitivo não mais
tem condições de subsistir, e o gênero humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser.
Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão formando, por agregação, uma soma de forças que possa arrastá-los sobre a resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum acordo. Essa soma de forças só pode nascer do concurso de diversos; contudo, sendo a força e a liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservação, como as empregará ele, sem se prejudicar, sem negligenciar os cuidados que se deve? Esta dificuldade, reconduzida ao meu assunto, pode ser enunciada nos seguintes termos.
``Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja de toda a força comum
a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça portanto
senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente.'' Tal é o problema fundamental cuja
solução é dada pelo contrato social.
As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do ato,
que a menor modificação as tornaria vãs e de nenhum efeito; de sorte que, conquanto jamais tenham sido
formalmente enunciadas, são as mesmas em todas as partes, em todas as partes tacitamente admitidas e
reconhecidas, até que, violado o pacto social, reentra cada qual em seus primeiros direitos e retoma a
liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual ele aqui renunciou. Todas essas cláusulas, bem entendido, se reduzem a uma única, a saber, a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, cada qual se entregando por completo e sendo a condição igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros.
Além disso, feita a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto o pode
ser, e nenhum associado tem mais nada a reclamar; porque, se aos particulares restassem alguns direitos,
como não haveria nenhum superior comum que pudesse decidir entre eles e o público, cada qual,
tornado nalgum ponto o seu próprio juiz, pretenderia em breve sê-lo em tudo; o estado natural
subsistiria, e a associação se tornaria necessariamente tirânica ou inútil. Enfim, cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem.
Portanto, se afastarmos do pacto social o que não constitui a sua essência,
acharemos que ele se reduz aos seguintes termos: ``Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob o supremo comando da vontade geral, e recebemos em conjunto cada membro como parte indivisível do todo.''
Logo, ao invés da pessoa particular de cada contratante, esse ato de associação produz um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quanto a assembléia de vozes, o qual recebe desse mesmo ato sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava outrora o nome de cidade (3) , e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado por seus membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é ativo; autoridade, quando comparado a seus semelhantes. No que concerne aos associados, adquirem coletivamente o nome de povo, e se chamam particularmente cidadãos, na qualidade de participantes na autoridade soberana, e vassalos, quando sujeitos às leis do Estado. Todavia, esses termos freqüentemente se confundem e são tomados um pelo outro. É suficiente saber distingui-los, quando empregados em toda a sua precisão.
VII -- Do soberano.
Vê-se, por esta fórmula, que o ato de associação encerra um acordo recíproco do
público com os particulares, e que cada indivíduo, contratante, por assim dizer, consigo mesmo,
se acha obrigado sob uma dupla relação, a saber: como membro do soberano para com os particulares, e
como membro do Estado para com o soberano. Mas não se pode aqui aplicar a máxima do direito
civil, que ninguém está obrigado aos acordos tomados consigo mesmo; porque há grande diferença entre
obrigar-se consigo mesmo ou com um todo de que se faz parte.
É necessário assinalar ainda que a deliberação pública, que pode obrigar todos
os vassalos ao soberano, em virtude de suas diferentes relações sob as quais cada um deles é considerado,
não pode, pela razão contrária, obrigar o soberano consigo mesmo, e que, em conseqüência, é contra a
natureza do corpo político o soberano impor-se uma lei que não possa infringir. Podendo
considerar-se sujeito a uma só e mesma relação, encontra-se ele no caso de um particular contratante consigo
mesmo; por onde se observa que não há nem pode haver nenhuma espécie de lei fundamental obrigatória para o corpo do povo, nem mesmo o contrato social. O que não significa não possa esse corpo obrigar-se com
outrem no que de modo algum derrogue esse contrato porque, no tocante ao estrangeiro, ele se
torna um simples ser, um indivíduo. Contudo, o corpo político ou o soberano, extraindo sua existência cinicamente da pureza do contrato, não pode jamais obrigar-se, mesmo para com outrem, a nada que derrogue esse ato primitivo, como alienar qualquer porção de si mesmo, ou submeter-se a outro soberano. Violar o ato pelo qual existe seria aniquilar-se, e o que nada é nada produz. Tão logo se encontre a multidão reunida num corpo, não se pode ofender um dos membros sem atacar o corpo, menos ainda ofender o corpo sem que os membros disso se ressintam. Assim, o dever e o interesse obrigam igualmente as duas partes contratantes a se auxiliarem de forma recíproca, e os próprios homens devem procurar reunir sob essa dupla relação todas as vantagens que disso dependem. Ora, sendo formado o soberano tão-só dos particulares que o compõem, não há nem pode haver interesse contrário ao deles; por conseguinte, não necessita a autoridade soberana de
fiador para com os vassalos, por ser impossível queira o corpo prejudicar todos os membros, e por, como logo veremos, não lhe ser possível prejudicar nenhum em particular. O soberano, somente pelo que é, é
sempre tudo o que deve ser.
Não sucede, porém, o mesmo com os vassalos em relação ao soberano, perante o qual, malgrado o interesse comum, ninguém responderia por suas obrigações, se ele não encontrasse
os meios de fazer com que lhe fossem fiéis. Com efeito, cada indivíduo pode, como homem, ter uma vontade particular contrária ou dessemelhante à vontade geral que possui na qualidade de cidadão. O interesse particular pode faltar-lhe de maneira totalmente diversa da que lhe fala o interesse comum: sua existência absoluta, e naturalmente independente, pode fazê-lo encarar o que deve à causa comum como uma
contribuição gratuita, cuja perda será menos prejudicial aos outros que o pagamento oneroso para si; e,
olhando a pessoa moral que constitui o Estado como um ser de razão, pois que não se trata de um homem, ele
desfrutará dos direitos do cidadão, sem querer preencher os deveres do vassalo: injustiça, cujo
progresso causaria a ruína do corpo político. A fim de que não constitua, pois, um formulário inútil, o pacto social contém tacitamente esta obrigação, a única a poder dar forças às outras: quem se recusar a obedecer à vontade geral a isto será constrangido pelo corpo em conjunto, o que apenas significa que será forçado a ser livre. Assim é esta condição: oferecendo os cidadãos à pátria, protege-os de toda dependência pessoal;
condição que promove o  artifício e o jogo da máquina política e que é a única a tornar legítimas as
obrigações civis, as quais, sem isso, seriam absurdas, tirânicas e sujeitas aos maiores abusos.
VIII -- Do estado civil.
A passagem do estado natural ao estado civil produziu no homem uma mudança
considerável, substituindo em sua conduta a justiça ao instinto, e imprimindo às suas ações a
moralidade que anteriormente lhes faltava. Foi somente então que a voz do dever, sucedendo ao
impulso físico, e o direito ao apetite, fizeram com que o homem, que até esse momento só tinha
olhado para si mesmo, se visse forçado a agir por outros princípios e consultar a razão antes de ouvir
seus pendores. Embora se prive, nesse estado, de diversas vantagens recebidas da Natureza, ganha outras
tão grandes, suas faculdades se exercitam e desenvolvem, suas idéias se estendem, seus sentimentos
se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto, que, se os abusos desta nova condição, não o
degradassem com freqüência a uma condição inferior àquela de que saiu, deveria abençoar incessantemente o
ditoso momento em que foi dali desarraigado para sempre, o qual transformou um animal estúpido e
limitado num ser inteligente, num homem. Reduzamos todo este balanço a termos fáceis de comparar. O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e pode alcançar; o que ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. Para que não haja engano em suas compensações, é necessário distinguir a liberdade natural, limitada pelas forças do indivíduo, da liberdade civil que é limitada pela liberdade geral, e a posse, que não é senão o efeito da força ou do direito do
primeiro ocupante, da propriedade, que só pode ser baseada num título positivo. Poder-se-ia, em prosseguimento do precedente, acrescentar à aquisição do estado civil a liberdade moral, a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, posto que o impulso apenas do apetite constitui a escravidão, e a obediência à lei a si mesmo prescrita é a liberdade. Mas já falei demasiadamente deste assunto, e o sentido filosófico do termo liberdade não
constitui aqui o meu objetivo.

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