Aula 7
Excertos do Leviatã - Hobbes
CAPÍTULO XIV
Da primeira e Segunda leis naturais, e dos contratos
O direito de natureza, a que os autores geralmente
chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem
possui de usai seu próprio poder, da maneira que
quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja,
de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo
que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como
meios adequados a esse fim.
Por liberdade entende-se, conforme a significação
própria da palavra, a ausência de impedimentos
externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do
poder que cada um tem de fazer o que quer, mas não
podem obstar a que use o poder que lhe resta, conforme
o que seu julgamento e razão lhe ditarem.
Uma lei de natureza (lex naturalis) é um preceito ou
regra geral, estabelecido pela razão, mediante o
qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa
destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para
preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder
contribuir melhor para preservá-la. Porque embora os que têm
tratado deste assunto costumem confundir jus e lex, o
direito e a lei, é necessário distingui-los um do outro.
Pois o direito consiste na liberdade de fazer ou de
omitir, ao passo que a lei determina ou obriga a uma dessas
duas coisas. De modo que a lei e o direito se
distinguem tanto como a obrigação e a liberdade, as quais são
incompatíveis quando se referem à mesma matéria. E
dado que a condição do homem (conforme foi declarado no capítulo anterior) é
uma condição de
guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um
governado por sua própria razão, e não havendo nada,
de que possa lançar mão, que não possa servir-lhe de
ajuda para a preservação de sua vida contra seus
inimigos, segue-se daqui que numa tal condição todo
homem tem direito a todas as coisas, incluindo os
corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este
direito de cada homem a todas as coisas, não poderá haver
para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a
segurança de viver todo o tempo que geralmente a
natureza permite aos homens viver. Consequentemente é
um preceito ou regra geral da razão, Que todo
homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que
tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga
pode procurar e usar todas as ajudas e vantagens da
guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei primeira
e fundamental de natureza, isto é, procurara paz, e
segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza,
isto é, por todos os meios que pudermos,
defendermo-nos a nós mesmos.
Desta lei fundamental de natureza, mediante a qual se
ordena a todos os homens que procurem a paz,
deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando
outros também o façam, e na medida em que tal
considere necessário para a paz e para a defesa de si
mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas,
contentando-se, em relação aos outros homens, com a
mesma liberdade que aos outros homens permite em
relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver
seu direito de fazer tudo quanto queira todos os
homens se encontrarão numa condição de guerra. Mas se
os outros homens não renunciarem a seu direito,
assim como ele próprio, nesse caso não há razão para
que alguém se prive do seu, pois isso eqüivaleria a
oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é
obrigado), e não a dispor-se para a paz. É esta a lei do
Evangelho: Faz aos outros o que queres que te façam a
ti. E esta é a lei de todos os homens: Quod tibi jïeri
non vis, alteri ne
feceris.
Renunciar ao direito a alguma coisa é o mesmo que
privar-se da liberdade de negar ao outro o
beneficio de seu próprio direito à mesma coisa. Pois
quem abandona ou renuncia a seu direito não dá a
qualquer outro homem um direito que este já não
tivesse antes, porque não há nada a que um homem não
tenha direito por natureza; mas apenas se afasta do
caminho do outro, para que ele possa gozar de seu direito
original, sem que haja obstáculos da sua parte, mas
não sem que haja obstáculos da parte dos outros. De modo
que a conseqüência que redunda para um homem da
desistência de outro a seu direito é simplesmente uma
diminuição equivalente dos impedimentos ao uso de seu
próprio direito original.
Abandona-se um direito simplesmente renunciando a ele,
ou transferindo-o para outrem. Simplesmente
renunciando, quando não importa em favor, de quem irá
redundar o respectivo beneficio. Transferindo-o,
quando com isso se pretende beneficiar uma determinada
pessoa ou pessoas. Quando de qualquer destas
maneiras alguém abandonou ou adjudicou seu direito,
diz-se que fica obrigado ou forçado a não impedir
àqueles a quem esse direito foi abandonado ou adjudicado
o respectivo beneficio, e que deve, e é seu dever,
não tornar nulo esse seu próprio ato voluntário; e que
tal impedimento é injustiça e injúria, dado que é sine
jure, pois se transferiu ou se renunciou ao direito.
De modo que a injúria ou injustiça, nas controvérsias do
mundo, é de certo modo semelhante àquilo que nas
disputas das Escolas se chama absurdo. Porque tal como
nestas últimas se considera absurdo contradizer aquilo
que inicialmente se sustentou, assim também no
mundo se chama injustiça e injúria desfazer
voluntariamente aquilo que inicialmente se tinha voluntariamente
feito. O modo pelo qual um homem simplesmente
renuncia, ou transfere seu direito, é uma declaração ou
expressão, mediante um sinal ou sinais voluntários e
suficientes, de que assim renuncia ou transfere, ou de
que assim renunciou ou transferiu o mesmo àquele que o
aceitou. Estes sinais podem ser apenas palavras ou
apenas ações, ou então (conforme acontece na maior
parte dos casos) tanto palavras como ações. E estas são
os vínculos mediante os quais os homens ficam
obrigados, vínculos que não recebem sua força de sua própria
natureza (pois nada se rompe mais facilmente do que a
palavra de um homem), mas do medo de alguma má
conseqüência resultante da ruptura.
Quando alguém transfere seu direito, ou a ele
renuncia, fá-lo em consideração a outro direito que
reciprocamente lhe foi transferido, ou a qualquer
outro bem que daí espera. Pois é um ato voluntário, e o
objetivo de todos os atos voluntários dos homens é
algum bem para si mesmos. Portanto há alguns direitos
que é impossível admitir que algum homem, por
quaisquer palavras ou outros sinais, possa abandonar ou
transferir. Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar
ao direito de resistir a quem o ataque pela força para
tirar-lhe a vida, dado que é impossível admitir que
através disso vise a algum beneficio próprio. O mesmo
pode dizer-se dos ferimentos, das cadeias e do
cárcere, tanto porque desta aceitação não pode resultar
benefício, ao contrário da aceitação de que outro seja
ferido ou encarcerado, quanto porque é impossível
saber, quando alguém lança mão da violência, se com
ela pretende ou não provocar a morte. Por último, o
motivo e fim devido ao qual se introduz esta renúncia
e transferência do direito não é mais do que a segurança
da pessoa de cada um, quanto a sua vida e quanto aos
meios de preservá-la de maneira tal que não acabe por dela se cansar. Portanto
se através de palavras ou outros sinais um homem parecer despojar-se do fim
para
que esses sinais foram criados, não deve entender-se
que é isso que ele quer dizer, ou que é essa a sua
vontade, mas que ele ignorava a maneira como essas
palavras e ações irão ser interpretadas.
A transferência mútua de direitos é aquilo a que se
chama contrato.
Há uma diferença entre a transferência do direito a
uma coisa e a transferência ou tradição, ou seja, a
entrega da própria coisa. Porque a coisa pode ser
entregue juntamente com a translação do direito, como na
compra e venda com dinheiro a vista, ou na troca de
bens e terras; ou pode ser entregue algum tempo depois.
Por outro lado, um dos contratantes pode entregar a
coisa contratada por seu lado, permitindo que o
outro cumpra a sua parte num momento posterior
determinado, confiando nele até lá. Nesse caso, da sua parte
o contrato se chama pacto ou convenção. Ambas as
partes podem também contratar agora para cumprir mais
tarde, e nesse caso, dado que se confia naquele que
deverá cumprir sua parte, sua ação se chama observância
da promessa, ou fé; e a falta de cumprimento (se for
voluntária) chama-se violação de fé.
Quando a transferência de direito não é mútua, e uma
das partes transfere na esperança de assim
conquistar a amizade ou os serviços de um outro, ou
dos amigos deste; ou na esperança de adquirir reputação
de caridade ou magnanimidade; ou para livrar seu
espírito da cor da compaixão; ou na esperança de ser
recompensado no céu; nestes casos não há contrato, mas
doação, dádiva ou grafia, palavras que significam
uma e a mesma coisa.
Os sinais de contrato podem ser expressos ou por inferência.
Expressas são as palavras proferidas com
a compreensão do que significam. Essas palavras são do
tempo presente, ou do passado, como dou, adjudico,
dei, adjudiquei, quero que isto seja teu; ou do
futuro, como darei, adjudicarei, palavras do futuro a que se
chama promessas.
Os sinais por inferência são às vezes conseqüência de
palavras, e às vezes conseqüência do silêncio; às
vezes conseqüência de ações, e às vezes conseqüência
da omissão de ações. Geralmente um sinal por
inferência, de qualquer contrato, é tudo aquilo que
mostra de maneira suficiente a vontade do contratante.
As palavras sozinhas, se pertencerem ao tempo futuro e
encerrarem uma simples promessa, são sinais
insuficientes de uma doação e portanto não são
obrigatórias. Porque se forem do tempo futuro, como por
exemplo amanhã darei, são sinal de que ainda não dei,
e de que consequentemente meu direito não foi
transferido, continuando em minha posse até o momento
em que o transferir por algum outro ato. Mas se as
palavras forem do tempo presente ou do passado, como
por exemplo dei, ou dou para ser entregue amanhã,
nesse caso meu direito de amanhã é abandonado hoje, e
isto em virtude das palavras, mesmo que não haja
qualquer outro argumento de minha vontade. E há uma
grande diferença na significação das palavras Volo
hoc tuum esse cras e Cras dabo; isto é, entre Quero
que isto seja teu amanhã e Dar-te-ei isto amanhã. Porque a
primeira maneira de falar indica um ato da vontade
presente, ao passo que a segunda indica um ato da vontade
futura. Portanto a primeira frase, estando no
presente, transfere um direito futuro, e a segunda, que é do
futuro, não transfere nada. Mas se além das palavras
houver outros sinais da vontade de transferir um direito,
nesse caso, mesmo que a doação seja livre, pode
considerar-se que o direito é transmitido através de palavras
do futuro. Por exemplo, se alguém oferece um prêmio
para aquele que chegar primeiro ao fim de uma corrida,
a doação é livre; embora as palavras sejam do futuro,
mesmo assim o direito é transmitido, pois se esse
alguém não quisesse que suas palavras fossem assim
entendidas não as teria deixado escapar.
Nos contratos, o direito não é transmitido apenas
quando as palavras são do tempo presente ou
passado, mas também quando elas são do futuro, porque
todo contrato é uma translação ou troca mútua de
direitos. Portanto aquele que apenas promete, por já
ter recebido o beneficio por causa do qual prometeu, deve
ser entendido como tencionando que o direito seja
transmitido, porque se não tivesse a intenção de ver suas
palavras assim entendidas o outro não teria cumprido
primeiro sua parte. É por esse motivo que na compra e
na venda, e em outros atos de contrato, uma promessa é
equivalente a um pacto, e portanto é obrigatória.
De quem cumpre primeiro a sua parte no caso de um
contrato se diz que merece o que há de vir a
receber do cumprimento da parte do outro, o qual tem
como devido. E também quando é prometido um
prêmio apenas ao ganhador, ou quando se lança dinheiro
no meio de um grupo para ser aproveitado por quem
o apanhar, embora isto seja uma doação, apesar disso
assim ganhar, ou assim apanhar, equivale a merecer, e a
tê-lo como devido. Porque o direito é transferido pela
oferta do prêmio, e pelo ato de lançar o dinheiro,
embora não esteja determinado a quem é transferido, o
que só será feito pela realização do certame. Mas entre
essas duas espécies de mérito há esta diferença, que
no contrato eu mereço em virtude de meu próprio poder e
da necessidade do contratante; ao passo que no caso da
doação o que me permite merecer é apenas a
benevolência do doador. No contrato, mereço do
contratante que ele se desfaça de seu direito. No caso da
doação, não mereço que o doador se desfaça de seu
direito, e sim que, quando dele se desfizer, ele
seja meu e não de outrem. Creio ser este o significado
da distinção estabelecida pelas Escolas entre meritum congrui e meritum
condigni. Tendo Deus todo-poderoso prometido p Paraíso àqueles homens (cegos
pelos
desejos carnais) que forem capazes de atravessar este
mundo em conformidade com os preceitos e limites por
ele estabelecidos, dizem elas que o que de tal for
capaz merecerá o Paraíso ex congruo. Mas como nenhum
homem pode reclamar o direito a ele com base em sua
própria direitura ou retidão, ou em qualquer de seus
próprios poderes, mas apenas com base na livre graça
de Deus, dizem elas que nenhum homem pode merecer
o Paraíso ex condigno. Creio ser este o significado
dessa distinção, mas, dado que os disputantes não se põem
de acordo quanto à significação dos termos de sua
própria arte, a não ser enquanto isso lhes é de utilidade,
nada afirmarei de seu significado, limitando-me apenas
a dizer isto que quando uma doação é feita
indefinidamente, como no caso de um prêmio a ser
disputado, aquele que ganhar merece, e pode reclamar o
prêmio como sendo-lhe devido.
Quando se faz um pacto em que ninguém cumpre
imediatamente sua parte, e uns confiam nos outros,
na condição de simples natureza (que é uma condição de
guerra de todos os homens contra todos os homens),
a menor suspeita razoável torna nulo esse pacto. Mas
se houver um poder comum situado acima dos
contratantes, com direito e força suficiente para
impor seu cumprimento, ele não é nulo. Pois aquele que
cumpre primeiro não tem qualquer garantia de que o
outro também cumprirá depois, porque os vínculos das
palavras são demasiado fracos para refrear a ambição,
a avareza, a cólera e outras paixões dos homens, se não
houver o medo de algum poder coercitivo. O qual na
condição de simples natureza, onde os homens são todos
iguais, e juízes do acerto de seus próprios temores, é
impossível ser suposto. Portanto aquele que cumpre
primeiro não faz mais do que entregar-se a seu
inimigo, contrariamente ao direito (que jamais pode
abandonar) de defender sua vida e seus meios de vida.
Mas num Estado civil, onde foi estabelecido um poder
para coagir aqueles que de outra maneira
violariam sua fé, esse temor deixa de ser razoável.
Por esse motivo, aquele que segundo o pacto deve cumprir
primeiro é obrigado a fazê-lo.
A causa do medo que torna inválido um tal pacto deve
ser sempre algo que surja depois de feito o
pacto, como por exemplo algum fato novo, ou outro
sinal da vontade de não cumprir; caso contrário, ela não
pode tornar nulo o pacto. Porque aquilo que não pode
impedir um homem de prometer não deve ser admitido
como impedimento do cumprimento.
Aquele que transfere qualquer direito transfere também
os meios de gozá-lo, na medida em que tal
esteja em seu poder. Por exemplo, daquele que
transfere uma terra se entende que transfere também a
vegetação e tudo o que nela cresce. Também aquele que
vende um moinho não pode desviar a corrente que o
faz andar. E daqueles que dão a um homem o direito de
governar soberanamente se entende que lhe dão
também o direito de recolher impostos para pagar a seus
soldados, e de designar magistrados para a
administração da justiça.
É impossível fazer pactos com os animais, porque eles
não compreendem nossa linguagem, e portanto
não podem compreender nem aceitar qualquer translação
de direito, nem podem transferir qualquer direito a
outrem; sem mútua aceitação não há pacto possível.
É impossível fazer pactos com Deus, a não ser através
da mediação daqueles a quem Deus falou, quer
por meio da revelação sobrenatural, quer através dos
lugar-tenentes que sob ele governam, e em seu nome.
Porque de outro modo não podemos saber se nossos
pactos foram aceitos- ou não. Portanto aqueles que fazem
voto de alguma coisa contrária à lei de natureza fazem
voto em vão, pois cumprir tal voto seria uma coisa
injusta. E se for uma coisa ordenada pela lei de
natureza, não é o voto, mas a lei, que os vincula.
A matéria ou objeto de um pacto é sempre alguma coisa
sujeita a deliberação (porque fazer o pacto é
um ato da vontade, quer dizer, um ato, e o último ato,
da deliberação), portanto sempre se entende ser alguma
coisa futura, e que é considerada possível de cumprir
por aquele que faz o pacto.
Portanto prometer o que se sabe ser impossível não é
um pacto. Mas só depois de se verificar ser
impossível o que antes se considerava possível o pacto
é válido e, embora não obrigue à própria coisa, obriga
ao valor equivalente. Ou então, se também isso for
impossível, à tentativa sem fingimentos de cumprir o mais
possível; porque a mais do que isto ninguém pode ser
obrigado.
Os homens ficam liberados de seus pactos de duas
maneiras: ou cumprindo ou sendo perdoados. Pois o
cumprimento é o fim natural da obrigação, e o perdão é
a restituição da liberdade, constituindo a
retransferência daquele direito em que a obrigação
consistia.
Os pactos aceites por medo, na condição de simples
natureza, são obrigatórios. Por exemplo, se eu me
comprometo a pagar um resgate ou um serviço em troca
da vida, a meu inimigo, fico vinculado por esse
pacto. Porque é um contrato, em que um recebe o
beneficio da vida, e o outro receberá dinheiro ou serviços
em troca dela. Consequentemente, quando não há outra
lei (como é o caso na condição de simples natureza)
que proíba o cumprimento, o
pacto é válido. Portanto os prisioneiros de guerra que se comprometem a pagar
seu resgate são obrigados a pagá-lo. E se um príncipe
mais fraco assina uma paz desvantajosa com outro mais
forte, devido ao medo, é obrigado a respeitá-la, a não
ser (como acima ficou dito) que surja algum novo e
justo motivo de temor para recomeçar a guerra. E mesmo
vivendo num Estado, se eu me vir forçado a livrarme
de um ladrão prometendo-lhe dinheiro, sou obrigado a
pagá-lo, a não ser que a lei civil disso me dispense.
Porque tudo o que posso fazer legitimamente sem
obrigação posso também compactuar legitimamente por
medo, e o que eu compactuar legitimamente não posso
legitimamente romper.
Um pacto anterior anula outro posterior. Porque um
homem que transmitiu hoje seu direito a outro não
pode transmiti-lo amanhã a um terceiro, portanto a
promessa posterior não transmite direito algum, pois é
nula.
Um pacto em que eu me comprometa a não me defender da
força pela força é sempre nulo. Porque
(conforme acima mostrei) ninguém pode transferir ou
renunciar a seu direito de evitar a morte, os ferimentos
ou o cárcere (o que é o único fim da renúncia ao
direito), portanto a promessa de não resistir à força não
transfere qualquer direito em pacto algum, nem é
obrigatória. Porque embora se possa fazer um pacto nos
seguintes termos: Se eu não fizer isto ou aquilo,
mata-me; não se pode fazê-lo nestes termos: Se eu não fizer
isto ou aquilo, não te resistirei quando vieres
matar-me. Porque o homem escolhe por natureza o mal menor,
que é o perigo de morte ao resistir, e não o mal
maior, que é a morte certa e imediata se não resistir. E isto é
reconhecido como verdadeiro por todos os homens, na
medida em que conduzem os criminosos para a
execução e para a prisão rodeados de guardas armados,
apesar de esses criminosos terem aceitado a lei que os
condena.
Um pacto no sentido de alguém se acusar a si mesmo,
sem garantia de perdão, é igualmente inválido.
Pois na condição de natureza, em que todo homem é
juiz, não há lugar para a acusação, e no estado civil a
acusação é seguida pelo castigo; sendo este força,
ninguém é obrigado a não lhe resistir. O mesmo é
igualmente verdadeiro da acusação daqueles por causa
de cuja condenação se fica na miséria, como a de um
pai, uma esposa ou um benfeitor.
Porque o testemunho de um tal acusador, se não for
prestado voluntariamente, deve considerar-se
corrompido pela natureza, e portanto não deve ser
aceito; e quando o testemunho de um homem não vai
receber crédito ele não é obrigado a prestá-lo. Também
as acusações arrancadas pela tortura não devem ser
aceitas como testemunhos. Porque a tortura é para ser
usada como meio de conjetura, de esclarecimento num
exame posterior e de busca da verdade; e o que nesse
caso é confessado contribui para aliviar quem é
torturado, não para informar os torturadores. Portanto
não deve ser aceito como testemunho suficiente porque,
quer o torturado se liberte graças a uma verdadeira ou
a uma falsa acusação, fá-lo pelo direito de preservar sua
vida.
Dado que a força das palavras (conforme acima
assinalei) é demasiado fraca para obrigar os homens a
cumprirem seus pactos, só é possível conceber, na
natureza do homem, duas maneiras de reforçá-la. Estas são
o medo das conseqüências de faltar à palavra dada, ou
o orgulho de aparentar não precisar faltar a ela. Este
último é uma generosidade que é demasiado raro
encontrar para se poder contar com ela, sobretudo entre
aqueles que procuram a riqueza, a autoridade ou os
prazeres sensuais, ou seja, a maior parte da humanidade.
A paixão com que se pode contar é o medo, o qual pode
ter dois objetos extremamente gerais: um é o poder
dos espíritos invisíveis, e o outro é o poder dos
homens que dessa maneira se pode ofender. Destes dois,
embora o primeiro seja o maior poder, mesmo assim o
medo do segundo é geralmente o maior medo. O medo
do primeiros é, em cada homem, sua própria religião, a
qual surge na natureza do homem antes da sociedade
civil. Já o segundo não surge antes disso, ou pelo
menos não em grau suficiente para levar os homens a
cumprirem suas promessas, dado que na condição de
simples natureza a desigualdade do poder só é
discernida na eventualidade da luta. De modo que antes
da época da sociedade civil, ou em caso de
interrupção desta pela guerra, não há nada que seja
capaz de reforçar qualquer pacto de paz a que se tenha
anuído, contra as tentações da avareza da ambição, da
concupiscência, ou outro desejo forte, a não ser o medo
daquele poder invisível que todos veneram como Deus, e
na qualidade de vingador de sua perfídia. Portanto
tudo o que pode ser feito entre dois homens que não
estejam sujeitos ao poder civil é jurarem um ao outro
pelo Deus que ambos temem, juramento ou jura que é uma
forma de linguagem acrescentada a uma promessa;
pela qual aquele que promete exprime que, caso não a
cumpra, renuncia à graça de Deus, ou pede que sobre si
mesmo recaia sua vingança. Era assim a fórmula pagã,
que Júpiter me mate, como eu mato este animal. E
isto, juntamente com os rituais e cerimônias que cada
um usava em sua religião, a fim de tornar maior o medo
de faltar à palavra.
Fica assim manifesto que qualquer juramento feito
segundo outra fórmula ou ritual faz que aquele que
jura o faça em vão, e não é juramento algum. E não é
possível jurar por alguma coisa que quem jura não
pense ser Deus. Porque embora
os homens costumem às vezes jurar por seu rei, por motivo de medo ou de
lisonja, com isso dão a entender que lhe atribuem
honra divina. E jurar desnecessariamente por Deus não é
mais do que profanar seu nome, ao mesmo tempo que
jurar por outras coisas, como os homens fazem no
discurso vulgar, não é jurar, e sim um costume ímpio,
produzido por um excesso de veemência na linguagem.
Fica manifesto também que o juramento nada acrescenta
à obrigação. Porque um pacto, caso seja
legítimo, vincula aos olhos de Deus, tanto sem o
juramento como com ele; caso seja ilegítimo não vincula
nada, mesmo que seja
confirmado por um juramento.
SEGUNDA PARTE
DO ESTADO
CAPÍTULO XVII
Das causas, geração e definição de um
O fim último, causa final e desígnio dos homens (que
amam naturalmente a liberdade e o domínio
sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre
si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o
cuidado com sua própria conservação e com uma vida
mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela
mísera condição de guerra que é a conseqüência
necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos
homens, quando não há um poder visível capaz de os
manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo,
ao cumprimento de seus pactos e ao respeito àquelas
leis de natureza que foram expostas nos capítulos
décimo quarto e décimo quinto.
Porque as leis de natureza (como a justiça, a
eqüidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer
aos outros o que queremos que nos façam) por si
mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de
levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas
paixões naturais, as quais nos fazem tender para a
parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas
semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras,
sem força para dar qualquer segurança a ninguém.
Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita
quando tem vontade de respeitá-las e quando pode
fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder
suficientemente grande para nossa segurança, cada um
confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em
sua própria força e capacidade, como proteção contra
todos os outros. Em todos os lugares onde os homens
viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se
uns aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão
longe de ser considerada
contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior
era a
honra adquirida. Nesse tempo os homens tinham como
únicas leis as leis da honra, ou seja, evitar a crueldade,
isto é, deixar aos outros suas vidas e seus
instrumentos de trabalho. Tal como então faziam as pequenas
famílias, assim também fazem hoje as cidades e os
reinos, que não são mais do que famílias maiores, para sua
própria segurança ampliando seus domínios e, sob
qualquer pretexto de perigo, de medo de invasão ou
assistência que pode ser prestada aos invasores,
legitimamente procuram o mais possível subjugar ou
enfraquecer seus vizinhos, por meio da força ostensiva
e de artifícios secretos, por falta de qualquer outra
segurança; e em épocas futuras por tal são recordadas
com honra.
Não é a união de um pequeno número de homens que é
capaz de oferecer essa segurança, porque
quando os números são pequenos basta um pequeno
aumento de um ou outro lado para tornar a vantagem da
força suficientemente grande para garantir a vitória,
constituindo portanto tal aumento um incitamento .à
invasão. A multidão que pode ser considerada
suficiente para garantir nossa segurança não pode ser definida
por um número exato, mas apenas por comparação com o
inimigo que tememos, e é suficiente quando a
superioridade do inimigo não é de importância tão
visível e manifesta que baste para garantir a vitória,
incitando-o a tomar a iniciativa da guerra.
Mesmo que haja uma grande multidão, se as ações de
cada um dos que a compõem forem
determinadas segundo o juízo individual e os apetites
individuais de cada um, não poderá esperar-se que ela
seja capaz de dar defesa e proteção a ninguém, seja
contra o inimigo comum, seja contra as injúrias feitas uns
aos outros. Porque divergindo em opinião quanto ao
melhor uso e aplicação de sua força, em vez de se
ajudarem só se atrapalham uns aos outros, e devido a
essa oposição mútua reduzem a nada sua força. E devido
a tal não apenas facilmente serão subjugados por um
pequeno número que se haja posto de acordo, mas além
disso, mesmo sem haver inimigo comum, facilmente farão
guerra uns aos outros, por causa de seus interesses
particulares. Pois se fosse licito supor uma grande
multidão capaz de consentir na observância da justiça e das
outras leis de natureza, sem um poder comum que
mantivesse a todos em respeito, igualmente o seria supor a
humanidade inteira capaz do mesmo. Nesse caso não
haveria, nem seria necessário, qualquer governo civil,
ou qualquer Estado, pois haveria paz sem sujeição.
Também não é bastante para garantir aquela segurança
que os homens desejariam que durasse todo
o tempo de suas vidas, que eles sejam governados e
dirigidos por um critério único apenas durante um
período limitado, como é o caso numa batalha ou numa
guerra. Porque mesmo que seu esforço unânime lhes
permita obter uma vitória contra um inimigo estrangeiro,
depois disso, quando ou não terão mais um inimigo
comum, ou aquele que por alguns é tido por inimigo é
por outros tido como amigo, é inevitável que as
diferenças entre seus interesses os levem a
desunir-se, voltando a cair em guerra uns contra os outros.
É certo que há algumas criaturas vivas, como as
abelhas e as formigas, que vivem sociavelmente
umas com as outras (e por isso são contadas por
Aristóteles entre as criaturas políticas), sem outra direção
senão seus juízos e apetites particulares, nem
linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que
consideram adequado para o beneficio comum. Assim,
talvez haja alguém interessado em saber por que a
humanidade não pode fazer o mesmo. Ao que tenho a
responder o seguinte.
Primeiro, que os homens estão constantemente
envolvidos numa competição pela honra e pela
dignidade, o que não ocorre no caso dessas criaturas.
E é devido a isso que surgem entre os homens a inveja e
o ódio, e finalmente a guerra, ao passo que entre
aquelas criaturas tal não acontece.
Segundo, que entre essas criaturas não há diferença
entre o bem comum e o bem individual e, dado
que por natureza tendem para o bem individual, acabam
por promover o bem comum. Mas o homem só
encontra felicidade na comparação com os outros homens,
e só pode tirar prazer do que é eminente.
Terceiro, que, como essas criaturas não possuem (ao
contrário do homem) o uso da razão, elas não
vêem nem julgam ver qualquer erro na administração de
sua existência comum. Ao passo que entre os
homens são em grande número os que se julgam mais
sábios, e mais capacitados que os outros para o
exercício do poder público. E esses esforçam-se por
empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e
outros doutra, acabando assim por levar o país à
desordem e à guerra civil.
Quarto, que essas criaturas, embora sejam capazes de
um certo uso da voz, para dar a conhecer umas
às outras seus desejos e outras afecções, apesar
disso' carecem daquela arte das palavras mediante a qual
alguns homens são capazes de apresentar aos outros o
que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a
aparência do bem; ou então aumentando ou diminuindo a
importância visível do bem ou do mal, semeando o
descontentamento entre os homens e perturbando a seu
bel-prazer a paz em que os outros vivem.
Quinto, as criaturas irracionais são incapazes de
distinguir entre injúria e dano, e consequentemente
basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem
com seus semelhantes. Ao passo que o homem é tanto
mais implicativo quanto mais satisfeito se sente, pois
é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e
para controlar as ações dos
que governam o Estado.
Por último, o acordo vigente entre essas criaturas é
natural, ao passo que o dos homens surge apenas
através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto
não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais,
além de um pacto, para tornar constante e duradouro
seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha
em respeito, e que dirija suas ações no sentido do
beneficio comum.
A única maneira de instituir um tal poder comum, capaz
de defendê-los das invasões dos
estrangeiros e das injúrias uns dos outros,
garantindo-lhes assim uma segurança suficiente para que, mediante
seu próprio labor e graças aos frutos da terra, possam
alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força
e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens, que
possa reduzir suas diversas vontades, por
pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale
a dizer: designar um homem ou uma assembléia de
homens como representante de suas pessoas,
considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de
todos os atos que aquele que representa sua pessoa
praticar ou levar a praticar, em tudo o que disser respeito à
paz e segurança comuns; todos submetendo assim suas
vontades à vontade do representante, e suas decisões a
sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou
concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa
só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada
homem com todos os homens, de um modo que é como se
cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu
direito de governar-me a mim mesmo a este
homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição
de transferires a ele teu direito, autorizando de
maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à
multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado,
em latim civitas. É esta a geração daquele grande
Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes)
daquele Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus
Imortal, nossa paz e defesa. Pois graças a esta
autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no
Estado, é-lhe conferido o uso de tamanho poder e força que o
terror assim inspirado o torna capaz de conformar as
vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio
país, e ela ajuda mútua contra os inimigos
estrangeiros. É nele que consiste a essência do testado, a qual pode
ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma
grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os
outros, foi instituída por cada um como autora, de
modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da
maneira que considerar conveniente, para assegurara
paz e a defesa comum.
Àquele que é portador dessa pessoa se chama soberano,
e dele se diz que possui poder soberano.
Todos os restantes são súditos.
Este poder soberano pode ser adquirido de duas
maneiras. Uma delas é a sarça natural, como quando
um homem obriga seus filhos a submeterem-se, e a
submeterem seus próprios filhos, a sua autoridade, na
medida em que é capaz de destruí-los em caso de
recusa. Ou como quando um homem sujeita através da
guerra seus inimigos a sua vontade, concedendo-lhes a
vida com essa condição. A outra é quando os homens
concordam entre si em submeterem-se a um homem, ou a
uma assembléia de homens, voluntariamente, com a
esperança de serem protegidos por ele contra todos os
outros. Este último pode ser chamado um Estado
Político, ou um Estado por instituição. Ao primeiro
pode chamar-se um Estado por aquisição. Vou em
primeiro lugar referir-me ao
Estado por instituição.
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